Na verdade, vem esta colectânea de
intervenções suas na sequência da investigação que longamente levou a cabo e
que desembocou na tese de doutoramento, defendida a 1 de Junho de 2010, na
Universidade Autónoma de Lisboa, e que viria a ser publicada: O Casticismo em Unamuno e Torga (Minerva
Coimbra, 2012). No fundo, creio, este é o espírito que Carlos Carranca quis
incarnar: ao sublinhar a ideologia destes dois Miguéis, o patriotismo deles em
relação a uma pátria mais imaginada, mais projectada que real, Carlos Carranca
chama a si esta vontade de, também ele, contribuir à sua maneira para fomentar
acrisolado amor à ideia de Portugal.
Ibéria é uma noção, uma utopia. Não
existe. Nunca existiu – nem na História nem na Geografia. É o mosaico de povos
que por este diversificado rincão peninsular ao longo dos tempos se foram,
pouco a pouco, instalando, moldando-se uns aos outros, comungando…
Reúne Carlos Carranca, neste volume
de uma centena de páginas, recentes intervenções suas a propósito do que é a
sua… ‘fixação’: as personalidades de Unamuno e de Torga, cujos traços biográficos
fundamentais começa por enumerar.
Encontrou em Agustín Remesal – também
ele um sonhador e apaixonado pelo nosso país, onde tem passado muito tempo – um
arauto dos mesmos sentimentos, acompanhando-o, por isso, no texto inicial do
livro – a reproduzir a apresentação que dele fez – por terras de Portugal. Eco
das viagens de Unamuno, num escalpelizar de pessoas e de paisagens, tal como
fizera Torga.
Reproduz o segundo texto uma
conferência proferida na Lousã – onde Carlos Carranca tem as suas raízes – na
Páscoa de 2002. O tema? O sentimento religioso tanto de Torga como de Unamuno.
É uma análise, diria eu, filosófica, inspirada, naturalmente, no que um e outro
deixaram transparecer aqui e além. Acreditavam em Deus? Parece que sim – num
Deus, porém, à maneira de cada um, muito íntimo, sem obediência a hierarquias.
Recordo que, um dia, na Gráfica de Coimbra, após ter-me cruzado com Miguel Torga
(ele acompanhava bem de perto as edições dos seus livros), fiquei de conversa
com o Padre Valentim e o tema foi: era Torga um crente? Tema que Carlos
Carranca viria a abordar em três livros: Torga
– O Bicho Religioso (Lisboa, 2000); A
Nostalgia de Deus ou a Palavra Perdida em Miguel Torga (Lisboa, 2001); O Sentimento Religioso em Torga e Unamuno (Lisboa,
2002).
Poesia e religião, a Poesia
«assumida como uma religião oposta a Deus» (p. 37). E conclui: Torga «não
aceita a existência concreta de Deus, mas sente-a» (p. 40).
O terceiro tema é aparentemente
político, porque versa a Res Publica.
Assim mesmo, à latina, a significar não a República oposta à Realeza, mas a
«coisa pública». Uma reflexão breve, concretizada em duas conferências no quadro
do centenário da implantação da República, na Lousã (novamente) e em Lisboa.
Convidado a fazer a alocução oficial
na abertura do ano lectivo, em 2009, na Escola Superior de Educação Almeida
Garrett, onde há vários anos lecciona, Carlos Carranca aproveitou para se
referir à vida de Torga, encarada de modo especial do prisma da aprendizagem,
servindo-se de muitos tópicos colhidos na assídua visitação aos diários do
Poeta, a ilustrar momentos significativos da sua biografia: os quatro tempos de
aprendizagem de uma Idade do Ouro (p. 57); a Idade da Prata, no Brasil; os
quatro tempos da Idade do Bronze (p. 62) e os quatro da Idade do Ferro (p. 65):
ser pai, a visita às colónias, o 25 de Abril e o da Desilusão.
Permita-se-me que desse trecho – o
mais extenso do livrinho (24 páginas) – assinale uma passagem quase fugaz, que consubstancia,
a meu ver, também uma das noções predilectas de Carlos Carranca: a diferença
entre instruir e educar. Temos, hoje, um Ministério da Educação –
e não deveríamos ter; nos primeiros tempos da República, o Ministério era da Instrução
Pública – e assim deveria ter continuado. Escreve Carlos Carranca:
«A educação dá-se em casa, diz o
povo, enquanto que a instrução serve para construir sem limitar, fora de
portas. […] É nessa confluência da educação em família e da instrução fora de
casa que cada um se vai descobrindo» (p. 52).
Bom tema para reflexão, não há
dúvida.
Deveras estimulante a súmula que
Carlos Carranca apresenta da vida de Miguel Torga, captando a sua visão do
mundo, dos homens e, sobretudo, do homem português, que de duas culturas se
alimenta: «uma que parece e outra que é». Como, aliás, acrescentaria eu, é
capaz de ser o alimento duplo (ou dúplice, se se preferir, ou – diríamos
contemporaneamente – bipolar) do que à nossa volta se observa: o parecer e o
ser.
O último texto debruça-se sobre a
ideia de Europa no Diário XVI.
Naturalmente, uma ideia bem nítida da catástrofe para onde, inexorável, a
cegueira do implacável poder económico nos encurralou. Um futuro «comprometido»
– e cito a parte final deste ensaio, publicado em 2012 numa revista da Universidade
de Aveiro:
«Comprometido na vulgaridade
massificante de um shopping-center enorme,
gerido por agentes de um poder sem rosto, e onde alguns humanos como formigas,
sem lugar nem tempo para ocuparem a mesa de um café ausente, nervoso, inseguros
e sós, sem vida para esse tempo, fumam um cigarrinho triste» (p. 84).
Este não é Torga nem Unamuno.
Poderiam sê-lo. Mas com este templo do consumismo, o shopping-center (bem à inglesa, pois então!), com este templo é
mesmo Carlos Carranca que nos confronta.
Há ainda, no livro, três posfácios:
um do próprio Remesal; outro de Amadeu Carvalho Homem, catedrático de História
da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra; e o terceiro de António
Dinis, apresentado como sacerdote católico, de Coja. Comentam o que Carlos
Carranca escreveu.
Eu, porém, ficar-me-ia por aqui, no shopping-center do cafezinho apressado e
do cigarrinho triste. Acho que se assumem, de facto, como duas boas imagens a
reter – que as utopias não são, afinal, bem no sabemos, susceptíveis de se
cumprir! Não são! Nesse momento, deixariam de ser utopias e o Homem perderia a
capacidade de sonhar. E isso não pode acontecer! *
José d’Encarnação
*
Síntese da
intervenção feita, a 26 de Março de 2015, na sessão organizada, em Lisboa, pela
Sociedade da Língua Portuguesa.
Publicado
em Cyberjornal, edição de 29-03-2015:
Margarida Sorribas (30/3 às 17:57):
ResponderEliminarObrigada José d'Encarnação. E já vou por esta bela seara de palavras adentro ... que aconselho. Beijinho sentido e retribuído.