segunda-feira, 30 de março de 2015

Uma utopia a cumprir! (Acerca do livro «Unamuno e Torga, Poetas da Ibéria»)

             Quando pensei em redigir uma nota de leitura acerca do livro Unamuno e Torga, Poetas da Ibéria, da autoria de Carlos Carranca (edição de Talenticious, Figueira da Foz, Janeiro de 2015, ISBN 978-989-96938-9-0), a primeira ideia que me ocorreu foi dar-lhe o título de «Uma utopia a cumprir».
            Na verdade, vem esta colectânea de intervenções suas na sequência da investigação que longamente levou a cabo e que desembocou na tese de doutoramento, defendida a 1 de Junho de 2010, na Universidade Autónoma de Lisboa, e que viria a ser publicada: O Casticismo em Unamuno e Torga (Minerva Coimbra, 2012). No fundo, creio, este é o espírito que Carlos Carranca quis incarnar: ao sublinhar a ideologia destes dois Miguéis, o patriotismo deles em relação a uma pátria mais imaginada, mais projectada que real, Carlos Carranca chama a si esta vontade de, também ele, contribuir à sua maneira para fomentar acrisolado amor à ideia de Portugal.
            Ibéria é uma noção, uma utopia. Não existe. Nunca existiu – nem na História nem na Geografia. É o mosaico de povos que por este diversificado rincão peninsular ao longo dos tempos se foram, pouco a pouco, instalando, moldando-se uns aos outros, comungando…
            Reúne Carlos Carranca, neste volume de uma centena de páginas, recentes intervenções suas a propósito do que é a sua… ‘fixação’: as personalidades de Unamuno e de Torga, cujos traços biográficos fundamentais começa por enumerar.
            Encontrou em Agustín Remesal – também ele um sonhador e apaixonado pelo nosso país, onde tem passado muito tempo – um arauto dos mesmos sentimentos, acompanhando-o, por isso, no texto inicial do livro – a reproduzir a apresentação que dele fez – por terras de Portugal. Eco das viagens de Unamuno, num escalpelizar de pessoas e de paisagens, tal como fizera Torga.
            Reproduz o segundo texto uma conferência proferida na Lousã – onde Carlos Carranca tem as suas raízes – na Páscoa de 2002. O tema? O sentimento religioso tanto de Torga como de Unamuno. É uma análise, diria eu, filosófica, inspirada, naturalmente, no que um e outro deixaram transparecer aqui e além. Acreditavam em Deus? Parece que sim – num Deus, porém, à maneira de cada um, muito íntimo, sem obediência a hierarquias. Recordo que, um dia, na Gráfica de Coimbra, após ter-me cruzado com Miguel Torga (ele acompanhava bem de perto as edições dos seus livros), fiquei de conversa com o Padre Valentim e o tema foi: era Torga um crente? Tema que Carlos Carranca viria a abordar em três livros: Torga – O Bicho Religioso (Lisboa, 2000); A Nostalgia de Deus ou a Palavra Perdida em Miguel Torga (Lisboa, 2001); O Sentimento Religioso em Torga e Unamuno (Lisboa, 2002).
            Poesia e religião, a Poesia «assumida como uma religião oposta a Deus» (p. 37). E conclui: Torga «não aceita a existência concreta de Deus, mas sente-a» (p. 40).
            O terceiro tema é aparentemente político, porque versa a Res Publica. Assim mesmo, à latina, a significar não a República oposta à Realeza, mas a «coisa pública». Uma reflexão breve, concretizada em duas conferências no quadro do centenário da implantação da República, na Lousã (novamente) e em Lisboa.
            Convidado a fazer a alocução oficial na abertura do ano lectivo, em 2009, na Escola Superior de Educação Almeida Garrett, onde há vários anos lecciona, Carlos Carranca aproveitou para se referir à vida de Torga, encarada de modo especial do prisma da aprendizagem, servindo-se de muitos tópicos colhidos na assídua visitação aos diários do Poeta, a ilustrar momentos significativos da sua biografia: os quatro tempos de aprendizagem de uma Idade do Ouro (p. 57); a Idade da Prata, no Brasil; os quatro tempos da Idade do Bronze (p. 62) e os quatro da Idade do Ferro (p. 65): ser pai, a visita às colónias, o 25 de Abril e o da Desilusão.
            Permita-se-me que desse trecho – o mais extenso do livrinho (24 páginas) – assinale uma passagem quase fugaz, que consubstancia, a meu ver, também uma das noções predilectas de Carlos Carranca: a diferença entre instruir e educar. Temos, hoje, um Ministério da Educação – e não deveríamos ter; nos primeiros tempos da República, o Ministério era da Instrução Pública – e assim deveria ter continuado. Escreve Carlos Carranca:
            «A educação dá-se em casa, diz o povo, enquanto que a instrução serve para construir sem limitar, fora de portas. […] É nessa confluência da educação em família e da instrução fora de casa que cada um se vai descobrindo» (p. 52).
            Bom tema para reflexão, não há dúvida.
            Deveras estimulante a súmula que Carlos Carranca apresenta da vida de Miguel Torga, captando a sua visão do mundo, dos homens e, sobretudo, do homem português, que de duas culturas se alimenta: «uma que parece e outra que é». Como, aliás, acrescentaria eu, é capaz de ser o alimento duplo (ou dúplice, se se preferir, ou – diríamos contemporaneamente – bipolar) do que à nossa volta se observa: o parecer e o ser.
            O último texto debruça-se sobre a ideia de Europa no Diário XVI. Naturalmente, uma ideia bem nítida da catástrofe para onde, inexorável, a cegueira do implacável poder económico nos encurralou. Um futuro «comprometido» – e cito a parte final deste ensaio, publicado em 2012 numa revista da Universidade de Aveiro:
            «Comprometido na vulgaridade massificante de um shopping-center enorme, gerido por agentes de um poder sem rosto, e onde alguns humanos como formigas, sem lugar nem tempo para ocuparem a mesa de um café ausente, nervoso, inseguros e sós, sem vida para esse tempo, fumam um cigarrinho triste» (p. 84).
            Este não é Torga nem Unamuno. Poderiam sê-lo. Mas com este templo do consumismo, o shopping-center (bem à inglesa, pois então!), com este templo é mesmo Carlos Carranca que nos confronta.
            Há ainda, no livro, três posfácios: um do próprio Remesal; outro de Amadeu Carvalho Homem, catedrático de História da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra; e o terceiro de António Dinis, apresentado como sacerdote católico, de Coja. Comentam o que Carlos Carranca escreveu.
            Eu, porém, ficar-me-ia por aqui, no shopping-center do cafezinho apressado e do cigarrinho triste. Acho que se assumem, de facto, como duas boas imagens a reter – que as utopias não são, afinal, bem no sabemos, susceptíveis de se cumprir! Não são! Nesse momento, deixariam de ser utopias e o Homem perderia a capacidade de sonhar. E isso não pode acontecer! *

                                                                       José d’Encarnação
* Síntese da intervenção feita, a 26 de Março de 2015, na sessão organizada, em Lisboa, pela Sociedade da Língua Portuguesa.

Publicado em Cyberjornal, edição de 29-03-2015:

1 comentário:

  1. Margarida Sorribas (30/3 às 17:57):
    Obrigada José d'Encarnação. E já vou por esta bela seara de palavras adentro ... que aconselho. Beijinho sentido e retribuído.

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