Dois
aspectos me seduziram – que, como decerto acontecerá ao leitor, não é leitura susceptível
de ser deixada a meio nem para uma pausa de poucos minutos, tem de ler-se até
final, de supetão! Por um lado, a imparável tenacidade de um Homem, herdeiro
daquela estirpe dos Portugueses de antanho de «antes quebrar que torcer»!
Depois, os apontamentos histórico-sociológicos que da sua narrativa se
desprendem e que contribuem para, em pinceladas concretas, nos darem o retrato
de toda uma época. Mui oportuna é, pois, a sua publicação. Para que conste!
Na
verdade, estamos perante uma singela história pessoal, de uma pessoa com um
nome; mas essa foi, seguramente, a história de muitas outras, cujo nome se
olvidou. Bem fez, portanto, David Martins em se ter disponibilizado para no-la
contar.
Uma
história contada, de facto, em que,
por conseguinte, a oralidade detém lugar de relevo – e os editores procuraram
apenas adequar a essa oralidade a pontuação e uma que outra frase. Nada mais! «Um primo do meu pai tinha uma marcenaria, aqui
no canto desta rua da Biblioteca Municipal» – estamos a ver!... O inesperado,
mas bem sugestivo, uso do presente: «A minha situação não mudara em nada.
Decido partir para Lisboa». A linguagem falada, bem ao jeito do homem do
barrocal: «Ela estava a cramear lã, encarei com ela e ali fiquei
encalhado».
Perturbam-nos,
quiçá, as peripécias da criança nesses já longínquos (pensamos nós…) anos 30 do
século XX. A fome por que passou; a exploração; o desrespeito… «Aos treze anos,
[…] eu nunca conheci uma cama. Dormia ao pé das vacas, no palheiro, e as pulgas
eram tantas que o meu corpo estava negro». Sabemos
que hoje ainda é assim; mas queremos acreditar que será noutros horizontes, que
não o europeu – e talvez não.
Maravilha-nos,
acima de tudo, a sua enorme vontade em, por exemplo, querer aprender a ler,
porque, desde cedo, compreende quanto essa aprendizagem lhe é fundamental:
«Queria saber ler e escrever como todo o mundo.
Éramos cinco filhos, mas só eu não tive a sorte de ir à escola».
Encanta-nos
como David Martins, tantos anos passados, acaba por não guardar rancor algum e
aceita – com alguma bonomia até – as agruras por que passou. A história do
tempo das favas:
«Quando chegava a altura das
favas, comiam-se favas todos os dias. Favas e favas com favas. Chegava a um
ponto que as favas estavam escuras e faziam um caldo muito negro. Tomei uma tal
zanga às favas, até hoje».
Dizia-me
um saloio de Cascais que por aqui se reconhecia muito bem se o quintal era de
um algarvio: tinha favas. Meu pai também nunca deixou de semear favas e eu, tal
como David, fartava-me de favas e gritava: «Nunca mais nasce o fenacho nas favas!». Não sei se é assim
que a palavra se escreve; apenas me recordo bem do que era: uma parasita de
aspecto pegajoso e flor vistosa que nascia junto da raiz da faveira e que, dela
se alimentando, acabava por rapidamente a secar, esse pé e os demais do faval,
porque era uma… praga! E eu essa praga rogava!...
«E,
quando acabavam as favas, era o tempo das ervilhas e repetia-se o mesmo. Todos
os dias ervilhas, até ao fim. Quando as ervilhas já tinham apanhado algum
bicho, comíamos tudo, como se fosse ervilha com chouriço».
Escreveu
Pellegrino Artusi que «nem todos sabem ler, mas todos comem». E, de facto, as
lembranças mais presentes de David Martins são também do que comia: as sardinhas
amarelas – meia sardinha, aliás… O pão com toucinho cru, mais tarde – um hábito
muito meridional, que se prolongará décadas afora e, hoje, neste retorno que se
preconiza à gastronomia tradicional, acabamos por começar a ver, como aliciante,
nas feiras…
E
lembranças do dia-a-dia, de uma realidade muito diferente da actual:
«Com
13 anos nunca conheci um par de sapatos, nem botas, nem salário, nada desta
vida. Só me davam de comer. Antigamente, andar a servir era em troca de comer,
vestir e calçar. Mas era da roupa do marido que a patroa fazia roupa para mim.
Nunca tive uma camisa nova, nem calças».
«Nada
desta vida»!...
Valerá,
pois, a pena tomarmos consciência da situação.
Devido
às dificuldades familiares, o menino não continua a escola e anda em bolandas,
de casa em casa, onde o destratam. Corre para as campinas de Faro, cujas
hortas, nesse tempo (e ainda durante muito…), constituíam símbolo de fartura;
tenta incorporar-se na tropa para poder aprender a ler; foge com a namorada,
porque os pais se opõem ao casamento; demanda o Alentejo e, daí, Almada, à
vista da capital; quase por milagre, aceitam-no no Alfeite; entra para o
Partido Comunista; ajuda a preparar a intentona de Beja; foge a salto para
França… e é toda a odisseia dos que para lá foram na década de 60, um homem dos
sete ofícios, pode dizer-se!
Uma
história singular – que poderá ser a de muitos! Homens e… mulheres! De facto, o
papel da mulher não vem expressamente realçado por David Martins, mas ele não
se esquece de referir a consorte, que o acompanha, com os filhos atrás, e não
hesita, quase no final da estada em França, a pegar num carro e transportar
pessoas!
Há
apontamentos de ordem laboral que merecerão reflexão maior: porque o admitem
aqui, porque o rejeitam mais além… As atitudes incorrectas que levam à revolta
da classe operária. Tópicos a desenvolver pelos estudiosos!...
Cena
a fazer pensar, a do encontro com o Engº Sousa Coutinho, do Arsenal do Alfeite.
E quão elucidativa, na sua singeleza, essa descrição! Ora leia-se:
«Para passar para a Secção da Soldadura, tinha de me apresentar ao senhor
engenheiro da Construção Naval, que se chamava Sousa Coutinho. Quando o Sr.
Engenheiro me recebeu e viu a prova positiva do meu exame, a resposta foi muito
negativa e vergonhosa. Respondeu-me que tinha entrado para o Arsenal do Alfeite
como servente e teria de ser sempre servente.
Ora isto fez-me muito
mal.»
Não
admira que, ainda hoje, ao relatar o que as leis o impediram de fazer, as
repetições surjam, espontâneas. Por exemplo, o comentário à obrigação de
comprar passagem de ida e volta se se queria ir para colono no Ultramar: «Tinha de pagar duas passagens, que era para, no
caso de não me dar bem, já tinha a volta paga». Escreve:
«Esta resposta deixou-me completamente desiludido. Na minha maneira de
pensar, eu era uma pessoa que não servia para coisa alguma. Esta resposta
deixou-me completamente revoltado, porque considerei que as colónias faziam
parte do território português. Esta exigência era mesmo abusar de quem vivia na
miséria, porque com o salário que eu ganhava na agricultura não me dava para
apurar um centavo. Fiquei completamente desiludido com o governo».
E
desiludido haveria de ficar também, mais recentemente, quando se apercebeu que,
para gozar, ele e a mulher, da sua «bem merecida» reforma, o melhor era
voltarem para França, pois se negaram a reembolsá-lo das despesas de saúde
feitas lá:
«Quando
cheguei ao meu país de origem, com todas as facturas para reembolsar, responderam-me
que o que fiz em França podia fazer em Portugal e não me pagaram nada».
E,
assim, apesar da ‘nostalgia’ – que procura colmatar com regressos anuais à sua
querida São Brás – «resolvi voltar de novo para França em 2010», confessa. «Comprei
de novo uma casa e mudei outra vez de residência, recomecei a pagar os impostos
como cidadão francês».
Custa-nos
ler esta frase. Mas, na sua aparente singeleza – «recomecei a pagar os impostos
como cidadão francês» –, esconde, ou melhor, revela um murro enorme ao
paradigma vigente numa Europa que se proclama «das pessoas», mas, na crua e nua
realidade dos nossos dias, é, cada vez mais, a Europa dos dividendos!
Bem
haja, pois, David Martins, por esta extraordinária lição. E nem precisou,
Amigo, de ter biblioteca – como a não teve o Jesus Cristo cantado pelo nosso
portuguesíssimo Fernando Pessoa:
Mais que isto
É Jesus Cristo,
Que não sabia nada de
finanças
Nem consta que tivesse
biblioteca...
O
pior, Amigo, é que eles também não
têm biblioteca e pensam que sabem de finanças!
Cascais,
14 de Julho de 2015
José
d’Encarnação
Introdução ao livro Desafiando o Destino – a história da minha vida, de David Martins
Dias, Câmara Municipal de S. Brás de Alportel, Setembro de 2015, p. 9-13. A obra foi apresentada em
S. Brás de Alportel, a 4 de Setembro de 2015.
Manuela Correia 29/9 às 0:45
ResponderEliminarFaz-me lembrar as estórias do meu avô e do meu pai, tal como eu nascidos na serra de Silves. Deles recebi grandes lições: comer tudo, até as cascas dos figos. A fome marca a vida das pessoas, para sempre. Anos mais tarde, numa época de crise, em Angola, comi muito feijão com bicho, mas fome não passei. E a Terra é tão grande. Obrigada, professor, por não esquecer.
Muito grata, Professor, por tão bonita e importante partilha. Estas histórias de vida, comuns de norte a sul de Portugal - também eu as ouvia aos meus Pais - mostram-nos o pior e melhor do Ser humano: a crueldade e a dignidade. Já é chocante sabermo-las no passado, revoltante e preocupante, ainda que de um modo diferente, no presente. E o futuro?
ResponderEliminar