segunda-feira, 28 de setembro de 2015

Um desafio aceite e realizado

             Mui oportuno, sem dúvida, o título dado a esta autobiografia contada na primeira pessoa: o Destino desafiou o David ou foi o David que nunca deixou de o desafiar e acabou por o vencer?
            Dois aspectos me seduziram – que, como decerto acontecerá ao leitor, não é leitura susceptível de ser deixada a meio nem para uma pausa de poucos minutos, tem de ler-se até final, de supetão! Por um lado, a imparável tenacidade de um Homem, herdeiro daquela estirpe dos Portugueses de antanho de «antes quebrar que torcer»! Depois, os apontamentos histórico-sociológicos que da sua narrativa se desprendem e que contribuem para, em pinceladas concretas, nos darem o retrato de toda uma época. Mui oportuna é, pois, a sua publicação. Para que conste!
            Na verdade, estamos perante uma singela história pessoal, de uma pessoa com um nome; mas essa foi, seguramente, a história de muitas outras, cujo nome se olvidou. Bem fez, portanto, David Martins em se ter disponibilizado para no-la contar.
            Uma história contada, de facto, em que, por conseguinte, a oralidade detém lugar de relevo – e os editores procuraram apenas adequar a essa oralidade a pontuação e uma que outra frase. Nada mais! «Um primo do meu pai tinha uma marcenaria, aqui no canto desta rua da Biblioteca Municipal» – estamos a ver!... O inesperado, mas bem sugestivo, uso do presente: «A minha situação não mudara em nada. Decido partir para Lisboa». A linguagem falada, bem ao jeito do homem do barrocal: «Ela estava a cramear lã, encarei com ela e ali fiquei encalhado».
            Perturbam-nos, quiçá, as peripécias da criança nesses já longínquos (pensamos nós…) anos 30 do século XX. A fome por que passou; a exploração; o desrespeito… «Aos treze anos, […] eu nunca conheci uma cama. Dormia ao pé das vacas, no palheiro, e as pulgas eram tantas que o meu corpo estava negro». Sabemos que hoje ainda é assim; mas queremos acreditar que será noutros horizontes, que não o europeu – e talvez não.
            Maravilha-nos, acima de tudo, a sua enorme vontade em, por exemplo, querer aprender a ler, porque, desde cedo, compreende quanto essa aprendizagem lhe é fundamental:
            «Queria saber ler e escrever como todo o mundo. Éramos cinco filhos, mas só eu não tive a sorte de ir à escola».
            Encanta-nos como David Martins, tantos anos passados, acaba por não guardar rancor algum e aceita – com alguma bonomia até – as agruras por que passou. A história do tempo das favas:
        «Quando chegava a altura das favas, comiam-se favas todos os dias. Favas e favas com favas. Chegava a um ponto que as favas estavam escuras e faziam um caldo muito negro. Tomei uma tal zanga às favas, até hoje».
            Dizia-me um saloio de Cascais que por aqui se reconhecia muito bem se o quintal era de um algarvio: tinha favas. Meu pai também nunca deixou de semear favas e eu, tal como David, fartava-me de favas e gritava: «Nunca mais nasce o fenacho nas favas!». Não sei se é assim que a palavra se escreve; apenas me recordo bem do que era: uma parasita de aspecto pegajoso e flor vistosa que nascia junto da raiz da faveira e que, dela se alimentando, acabava por rapidamente a secar, esse pé e os demais do faval, porque era uma… praga! E eu essa praga rogava!...
            «E, quando acabavam as favas, era o tempo das ervilhas e repetia-se o mesmo. Todos os dias ervilhas, até ao fim. Quando as ervilhas já tinham apanhado algum bicho, comíamos tudo, como se fosse ervilha com chouriço».
            Escreveu Pellegrino Artusi que «nem todos sabem ler, mas todos comem». E, de facto, as lembranças mais presentes de David Martins são também do que comia: as sardinhas amarelas – meia sardinha, aliás… O pão com toucinho cru, mais tarde – um hábito muito meridional, que se prolongará décadas afora e, hoje, neste retorno que se preconiza à gastronomia tradicional, acabamos por começar a ver, como aliciante, nas feiras…
            E lembranças do dia-a-dia, de uma realidade muito diferente da actual:
            «Com 13 anos nunca conheci um par de sapatos, nem botas, nem salário, nada desta vida. Só me davam de comer. Antigamente, andar a servir era em troca de comer, vestir e calçar. Mas era da roupa do marido que a patroa fazia roupa para mim. Nunca tive uma camisa nova, nem calças».
            «Nada desta vida»!...
            Valerá, pois, a pena tomarmos consciência da situação.
            Devido às dificuldades familiares, o menino não continua a escola e anda em bolandas, de casa em casa, onde o destratam. Corre para as campinas de Faro, cujas hortas, nesse tempo (e ainda durante muito…), constituíam símbolo de fartura; tenta incorporar-se na tropa para poder aprender a ler; foge com a namorada, porque os pais se opõem ao casamento; demanda o Alentejo e, daí, Almada, à vista da capital; quase por milagre, aceitam-no no Alfeite; entra para o Partido Comunista; ajuda a preparar a intentona de Beja; foge a salto para França… e é toda a odisseia dos que para lá foram na década de 60, um homem dos sete ofícios, pode dizer-se!
            Uma história singular – que poderá ser a de muitos! Homens e… mulheres! De facto, o papel da mulher não vem expressamente realçado por David Martins, mas ele não se esquece de referir a consorte, que o acompanha, com os filhos atrás, e não hesita, quase no final da estada em França, a pegar num carro e transportar pessoas!
            Há apontamentos de ordem laboral que merecerão reflexão maior: porque o admitem aqui, porque o rejeitam mais além… As atitudes incorrectas que levam à revolta da classe operária. Tópicos a desenvolver pelos estudiosos!...
            Cena a fazer pensar, a do encontro com o Engº Sousa Coutinho, do Arsenal do Alfeite. E quão elucidativa, na sua singeleza, essa descrição! Ora leia-se:
            «Para passar para a Secção da Soldadura, tinha de me apresentar ao senhor engenheiro da Construção Naval, que se chamava Sousa Coutinho. Quando o Sr. Engenheiro me recebeu e viu a prova positiva do meu exame, a resposta foi muito negativa e vergonhosa. Respondeu-me que tinha entrado para o Arsenal do Alfeite como servente e teria de ser sempre servente.
            Ora isto fez-me muito mal.»
            Não admira que, ainda hoje, ao relatar o que as leis o impediram de fazer, as repetições surjam, espontâneas. Por exemplo, o comentário à obrigação de comprar passagem de ida e volta se se queria ir para colono no Ultramar: «Tinha de pagar duas passagens, que era para, no caso de não me dar bem, já tinha a volta paga». Escreve:
            «Esta resposta deixou-me completamente desiludido. Na minha maneira de pensar, eu era uma pessoa que não servia para coisa alguma. Esta resposta deixou-me completamente revoltado, porque considerei que as colónias faziam parte do território português. Esta exigência era mesmo abusar de quem vivia na miséria, porque com o salário que eu ganhava na agricultura não me dava para apurar um centavo. Fiquei completamente desiludido com o governo».
            E desiludido haveria de ficar também, mais recentemente, quando se apercebeu que, para gozar, ele e a mulher, da sua «bem merecida» reforma, o melhor era voltarem para França, pois se negaram a reembolsá-lo das despesas de saúde feitas lá:
            «Quando cheguei ao meu país de origem, com todas as facturas para reembolsar, responderam-me que o que fiz em França podia fazer em Portugal e não me pagaram nada».
            E, assim, apesar da ‘nostalgia’ – que procura colmatar com regressos anuais à sua querida São Brás – «resolvi voltar de novo para França em 2010», confessa. «Comprei de novo uma casa e mudei outra vez de residência, recomecei a pagar os impostos como cidadão francês».
            Custa-nos ler esta frase. Mas, na sua aparente singeleza – «recomecei a pagar os impostos como cidadão francês» –, esconde, ou melhor, revela um murro enorme ao paradigma vigente numa Europa que se proclama «das pessoas», mas, na crua e nua realidade dos nossos dias, é, cada vez mais, a Europa dos dividendos!
            Bem haja, pois, David Martins, por esta extraordinária lição. E nem precisou, Amigo, de ter biblioteca – como a não teve o Jesus Cristo cantado pelo nosso portuguesíssimo Fernando Pessoa:

            Mais que isto
            É Jesus Cristo,
            Que não sabia nada de finanças
            Nem consta que tivesse biblioteca...

            O pior, Amigo, é que eles também não têm biblioteca e pensam que sabem de finanças!

                                                           Cascais, 14 de Julho de 2015

                                                                       José d’Encarnação

            Introdução ao livro Desafiando o Destino – a história da minha vida, de David Martins Dias, Câmara Municipal de S. Brás de Alportel, Setembro de 2015, p. 9-13. A obra foi apresentada em S. Brás de Alportel, a 4 de Setembro de 2015.
                                  

2 comentários:

  1. Manuela Correia 29/9 às 0:45

    Faz-me lembrar as estórias do meu avô e do meu pai, tal como eu nascidos na serra de Silves. Deles recebi grandes lições: comer tudo, até as cascas dos figos. A fome marca a vida das pessoas, para sempre. Anos mais tarde, numa época de crise, em Angola, comi muito feijão com bicho, mas fome não passei. E a Terra é tão grande. Obrigada, professor, por não esquecer.

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  2. Muito grata, Professor, por tão bonita e importante partilha. Estas histórias de vida, comuns de norte a sul de Portugal - também eu as ouvia aos meus Pais - mostram-nos o pior e melhor do Ser humano: a crueldade e a dignidade. Já é chocante sabermo-las no passado, revoltante e preocupante, ainda que de um modo diferente, no presente. E o futuro?

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