Passaram
quase sete meses sobre o falecimento do Padre Valentim Marques. A notícia veio
no jornal de Coimbra O Campeão das
Províncias. Abriu na 1ª página da edição
de 5 de Junho p. p.:
«O
padre Valentim Marques – que, durante décadas, foi gerente da Gráfica de
Coimbra, propriedade da Diocese – morreu, hoje, aos 78 anos de idade».
Acrescentava-se
que o vitimara um acidente vascular cerebral e assinalava-se, desde logo, que
fora substituído, em Março de 2012, na gerência da Gráfica pelo padre Manuel
Carvalheiro Dias.
Nas
páginas interiores da edição , em
artigo assinado por Rui Avelar Duarte intitulado «Baixa entre os apoiantes da
liberdade de expressão», não foi esquecido o facto de, no período quente da
revolução portuguesa, o PREC, o
padre Valentim não ter hesitado em imprimir o jornal «A Luta», que se propunha
substituir o «República», dirigido então por Raul Rego e Victor Direito e cuja
publicação os revolucionários tinham
proibido! Nenhuma tipografia ousara fazê-lo!
E
acrescenta o jornalista:
«O
ex-gestor, conceituado no meio empresarial, esteve no centro das transformações
por que passou a Gráfica de Coimbra, um baluarte no seu sector de actividade
até acabar por falir».
Com
ele trabalhei durante quase quatro décadas e permita-se-me que a ele associe um
outro Valentim, o Morais, o grande obreiro de Mirandela & Cia,
de Lisboa, um visionário também ele! Na Mirandela se fazia o Jornal da Costa do Sol, que, mui
orgulhosamente, foi, a partir do nº 202, datado de 2 de Março de 1968, «o
primeiro jornal português impresso em offset»! Com a Gráfica de Coimbra
trabalhei também porque lá se faziam todas as publicações do Instituto de Arqueologia
da Faculdade de Letras de Coimbra. Pioneiros, ambos, a raiar a ousadia, pois
não iam a uma feira de artes gráficas que não trouxessem de lá o «último grito»
em maquinaria. A Mirandela acabou por soçobrar na viragem do descalabro económico
geral; a Gráfica, vítima de uma concorrência feroz…
Muito
aprendi com ambos e com os seus operários e custa-me ver como tão nobre arte se
deixa, amiúde, descarrilar! Tantas gralhas, tantos erros ortográficos e sintácticos,
tanta maquetização a
trouxe-mouxe!...
O papel pioneiro dos Salesianos
Custa-me,
sobretudo, porque, antes dos Valentins, eu convivera intensamente, como
professor, no ano lectivo de 1963-1964, na Escola Profissional de Santo António,
em Izeda, com a monotype, os caracteres
de chumbo, o prelo, os linguados, a revisão de provas… Uma escola onde, à
noite, os irmãos salesianos tipógrafos precisavam de beber bastante leite para
se desintoxicarem de uma jornada em ambiente saturado de chumbo…
Estava,
de facto, a Escola – que era de correcção ,
dependente dos Serviços Tutelares de Menores – confiada aos Salesianos e, tal
como acontec ia no mesmo âmbito, em
Vila do Conde, outra escola profissional e de correcção
que lhes fora entregue, um dos meios de integração
dos ‘correços’ na sociedade era a aprendizagem de um ofício. As artes gráficas
ocupavam nessa linha um lugar cimeiro.
S.
João Bosco (1815-1888), o fundador da congregação ,
cedo se apercebeu de quão importante era o ensino profissional, nomeadamente,
na altura, o que se prendia com as artes gráficas, pelo que elas podiam
proporcionar: os folhetos, os livrinhos, os jornais constituíam veículos únicos
para a educação da juventude e da população , em geral, uma população
desenraizada, vinda do campo para a cidade, em plena era industrial, na ânsia
de uma vida melhor.
A
obra de D. Bosco floresceu e as escolas tipográficas multiplicaram-se por todos
os países onde os Padres Salesianos foram aceites.
Entre
nós, pelas Oficinas de S. José, em Lisboa, por exemplo, passaram gerações de tipógrafos.
Aliás, Joaquim Antunes evocava no Boletim
Informativo de Dezembro/Janeiro, editado pelos Salesianos, o que fora, nos
anos 50, a
enorme homenagem feita, precisamente em Lisboa, ao salesiano Achiles Marchetti,
um dos que, vindos de Itália, fora mestre de muitos dos que rapidamente se espalharam
pelas tipografias do País. Uma das muitas "histórias que fizeram História"…
Por
isso, ao recordar a memória do Padre Valentim Marques – amigo e confidente de
Miguel Torga, que na Gráfica passava amiúde para rever ou entregar as provas
dos seus Diários… – e ao saudar a
obra que Valentim Morais mui ousadamente empreendeu, não posso deixar de saudar
também quantos, ainda hoje, preferem sentir nas mãos o contacto do papel. Saúdo
os livreiros que acarinham a língua portuguesa e terminantemente exigem
qualidade e revisão dos textos. Saúdo os que, apesar de tudo, ainda acham que
um jornal palpável (não meramente virtual) merece a pena. Bem sei que, para
isso, há mais árvores que se abatem; mas… esse abate, desde que racional e
programado, acaba por trazer, afinal, um benefício maior!
José d’Encarnação
Publicado em Cyberjornal, edição de 31-12-2015:
http://www.cyberjornal.net/index.php?option=com_content&view=article&id=1967:pelo-mundo-das-tipografias-os-dois-valentins&catid=91:quem-e-quem&Itemid=30
O meu pai foi tipógrafo...e nas tipografias fez-se um homem atento e crítico sobre o seu país e não só adquiriu uma cultura geral bem relevante, como desenvolveu uma escrita elegante e apurada.
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