José
d'Encarnação[*]
Resisto
a passar as páginas, antes de me consciencializar do que vou ler.
O Fio das Harpas.
Harpas contém ressonância antiga,
límpida, a desdobrar-se em ondas sonoras pelo espaço. Não um espaço qualquer!
Harpa requer recolhimento, em pequena sala aconchegada, em casebre de pedra nua
perdido na encosta num aninhar de lareira, sombra vasta de árvore a acolher rebanho
em hora de acarro – pois seja: que o tilintar da guizalhada não se compadece
com o vibrar das suas cordas…
Fio – com fio se faz um tecido para aquecer
mágoas e confortar rudezas; com fio se cortam maldades, se talham esconjuros…
Por um fio se passa, se vive, se morre, se grita – que ele também são fios as
nossas cordas vocais.
O
Fio das Harpas promete, pois, sossego,
sim, a maviosa envolvência; mas também o gume que não hesite em cortar!
Vamos
ver!
São
quase 200 páginas de caminho. Deixar-nos-emos embalar!
Olá!...
A caminhada promete – que por ali andou o lápis
azul, a confiscação compulsiva. E vozes do nosso actual – e eterno! – descontentamento.
Baladas. O Zeca, o Zé Jorge, o Adriano… Estamos, pois, em boa companhia!
Recorda-se a velha casa e os anciãos que a encheram. Os companheiros de viagem
– idos ou ainda presentes, perdidos nunca!
E
cá está a árvore! As folhas são os fios das harpas que resistem, a cantar,
mesmo que com vinagre insistam em lhes regar as raízes. Que elas sabem morrer
de pé! E sempre haverá flores, mesmo que o chão seja sombrio! Sempre – porque
nós, porque o poeta o quer!...
«Fico
contente se versos faço», se para isso ainda tenho liberdade, pois, no mar, «eu
vejo clamores pela paz». No mar, nos guindastes de aço, nas chaminés fumegantes,
nos bancos das escolas… Canto a terra – não pelo bem que ela tenha, mas pelo
que eu para ela sonho; canto o povo:
«Se
poeta sou
Sei
a quem o devo»
–
estes são, seguramente, dois dos versos mais significativos de Fernando
Bernardes, que acrescenta:
«Ao
povo a quem dou
Os
versos que escrevo».
Da sua vida rude
Colhi a poesia
Tentei quanto pude
Dar-lhe melodia (p. 26)
Assume-se
o poeta como um arauto, um elo de ligação. Não está sozinho, não, porque o que escreve
é dele e das gentes com quem lida e luta, das terras em que se situa e, livre,
quer criar raízes. Há, pois, este diálogo sempre! Não se perde em filosofias,
em rodriguinhos de estilo, não. Pão pão queijo queijo – mas sempre de uma forma
esbelta e, se possível, cantada, ritmada, prenhe de melopeia...
Que
se aprenda, que se baile, que se trauteie num ápice – porque apetece, qual rio
que brinca por entre as pedras, pássaro que saltita de ramo em ramo, onda que
desmaia na areia mas quer deixar rasto…
E
todo o Universo é convocado para a sinfonia, num conluio amoroso que não é só o
da pessoa amada, porque, aqui, amada é a mulher (sim), no lirismo a que não há
poeta português que, algum dia, consiga escapar, mas são as gentes, os irmãos…
«Apeia-se
o rei e o trono
põe
o pé ao pé do meu
tu
comigo somos dois
quem
ficou só já perdeu» (p. 110).
«Se
estou ao pé de ti
foge-me
o tempo entre os dedos…
Se
longe alongam-se os dias
como
em prisão, nos segredos» [1962] (p. 44).
Esta
noite choveu muito,
de
manhã fui ver o mar.
Esta
noite amei-te tanto,
Sereno
fiquei – de te amar… (p. 70).
E,
por falar em lirismo, sentir-se-ão bastas vezes os ecos das cantigas de amigo e
de amor d’outrora e de sempre, que o poeta é trovador mesmo e sonha em ir de
porta em porta, de corte em corte, de arraial em arraial, a dizer de sua justiça
– «quero a paz do tempo conquistado» –, a colher cravos onde outrem teimou em
semear abrolhos:
Amarga-me
a boca
Do
travo da vida
–
minha voz tão solta
Onde
foi perdida?
Menino
de escola
Alegre
e ridente
– onde foi perdida
Minha voz contente? (p. 31)
Ai flores, ai flores do verde pino
Se
sabedes novas do meu amigo
Ai
Deus i o é?
Ai
flores ai flores do verde prado
Se
sabedes novas do meu amado
Ai
Deus i o é?
Uma
delícia este ritmo de embalar:
vi-te vi-te verde
na pedra a cismar… (p. 84)
vermelho
vermelho sangue…
No
Inverno bato o queixo
–
qualquer dia, qualquer dia!...
No
Inverno aperto o cinto
– qualquer dia, qualquer dia!... (p.
34)
Irmão
camponês, acredita: qualquer dia, qualquer dia. E esse dia virá! «Que também na
lama do Nilo vicejam as flores de lótus»… (digo eu). Que «um Homem mesmo longe
mete medo» (p. 95).
Ecos
do nosso folclore, em que até a cana verde, algo de comezinho no nosso
dia-a-dia actual – quem há aí que veja uma cana verde, que oiça o sussurrar do
vento pelo canavial, que saiba, até, onde há canaviais?!... – até a cana verde
é ponto de referência. Nela pousou a esperança, apesar do vento, ela
aguentou-se lá. Por pouco tempo, parece, porque… pelo restolho se perdeu… (p.
89-90).
E
a mulher dos farrapos mexia e remexia no caixote. Tirou meio pão duro, tirou pente
velho, tirou uma flor. Mirou-a, mirou-a e… sussurrou: «Bom dia!». (p. 50) –
porque, nós queremos e proclamamos: «Hoje não há cifrões mas uma flor!» (p. 112).
E
relemos a história do Fio de Água – tem Alentejo fronteiras, terras largas
vista grande… Alguém hoje se admira que Fio de Água por lá ande?» (p. 62)
E
ele há também por i poemas a partir de mote, quase à moda de além-Tejo:
Papão
negro ave torva
Muito
bonda o desatino
Vai-te
embora em má hora!
Deixa dormir o menino…
Um soninho
descansado. (p. 82)
…
Pronto,
já li. Já saboreei. A longos haustos. Num comboio cheio de ir e vir Cascais –
Cais do Sodré – Cascais. E continuei no autocarro e assentei-me no banco do meu
jardim, que, junto às brancas orquídeas, aos antúrios bem vermelhos, com o Maio
ao colo, ronronando embora, tinha de acabá-lo já. Sem tardança, que apetecia
ler, ler… até final.
Acabei
e apetece-me agora voltar atrás, a outras páginas que anotei para releitura
serena.
Que
linda a história do buraquinho onde o menino depositou pedras de sal, um pirilampo,
suor e esperança, antes de adormecer. De manhã, nada nascera. A avó enganara-o
na esperança e ele perguntou: mas não há aí uns senhores que põem sal, pirilampos....
e não se preocupam nem com o suor nem com a esperança e… a coisa resulta?… Como
é, avó? (p. 83).
Essa
flor não nasceu, menino. Nem outras.
«Renascer
uma rosa, amigo Urbano, quando não há Primavera há tanto ano!...» (p. 101).
E
sabes porquê? Porque sob as frondosas faias se treinam cavalos, homens,
cães-polícias, enquanto Pedro, na sua boa fé, vai construindo prédios… (p. 106).
E quando soar a palavra pão, virão tiros, pegadas, baba – confusão! Porque… «Há
o que diz que sim e diz que não / conforme a meia cara com que fala» (p. 115) e
o importante senhor «viu escadas subiu escadas / ficou ao nível das gruas / e
ao nível dos cifrões / Não ao nível das pessoas» (p. 130), embora alicie: «Come
o milho, passarinho, vem cá abaixo à minha mão»; mas… «o passarinho tem asas:
antes morto que no chão! (p. 124).
Vem
o título do livro de um poema (p. 138), breve como o são quase todos, de que me
prendeu, de modo especial, a 1ª quadra, numa invocação às «doces aves» que –
com esse fio das harpas – vão tecendo o tempo… São as andorinhas da capa, em
revoada no azulejo, sedentas de insectos, em algazarra, não são, Fernando?
Primavera após Primavera… Este, um poema de 1980, onde, se calhar, carecia
haver em cima, ao jeito de José Gomes Ferreira, uma breve frase, em itálico, a
contar do motivo da inspiração e da frase, porque, de seguida, há estranhas
perguntas à mãe: sobre esse mesmo tempo, sobre açucenas por regar, sobre penas
que se revivem. Este tempo que voa… tem doçuras, tem flores imaculadas, tem
penas de doer…
E
quase nos apetece ficar no rochedo, à beira-mar, ouvindo o piar das aves, o
marulhar das ondas… e as açucenas por regar…
Poeta,
que queres tu? Que o tempo não voe, que as flores nunca murchem, que as penas
desapareçam? Não, poeta! Estás a querer o impossível, ainda que amor de mãe
tudo suplante e saiba inventar melopeias e te ofereça os perfumes que inebriam
as penas!...
Disse amor e fez o gesto
Disse amor e deu a mão
Este
é um daqueles momentos a eternizar, Fernando! E que bonito que é!
«Disse
amor e pensou homem
disse
homem pensou irmão». (p. 139)
Nisto
nos levam a palma os poetas, quando, com palavras simples, são do tamanho do
mundo!
Termina-se
na «construção por vir». Diria eu, a construção que se faz, que se quer fazer,
que urge fazer! Para que, na realidade, haja no topo as flores e, espraiando a
vista por zimbórios e terraços, de uma vez por todas, dali se veja luz, muita
luz e nunca, nunca, a terrível mordaça que silencia, que impõe negras vendas
nos olhos, que castiga o grito e ameaça a revolta!
Que,
afinal, Amigos, é de fraternidade a mensagem, fraternidade em construção, uma
construção difícil, sim, mas tremendamente consoladora:
Pedra sobre pedra
a mão
o muro abraça! (p. 154)
Abracemo-lo!
[*] O texto reproduz a apresentação feita, a 27 de Maio
de 2009, no Palácio das Galveias, em Lisboa, do livro em epígrafe, editado por
Mar da Palavra – Edições, Lda., Coimbra, Maio de 2009; ISBN: 978-972-8910-39-6.
João Rebuge 2016-02-07:
ResponderEliminarA Poesia na "mão" do poeta diz e fala... e nos olhos de quem lê ganha significado(s)! Vários brilhos que nascem de mil e uma faces de um mesmo diamante, por vezes em bruto, mas do mesmo modo belos!