quinta-feira, 16 de abril de 2015

Então, vá!

             Ao analisar uma dissertação de doutoramento, encontrei, entre outras de idêntico teor, esta frase, que vem na sequência da opinião de que não se deve considerar o aspecto físico da sepultura para daí tirar garantidas conclusões acerca de quem nela está sepultado. De facto, amiúde não há testamento nesse sentido e o monumento funerário é o resultado das intenções da família. Isso quis dizer o autor da dissertação ao escrever:
            «… O que pode dar uma imagem errada do estatuto social dos cadáveres, pois muitos tornavam-se na morte aquilo que não foram em vida».
            «Quis dizer» mas, lendo melhor, é bem provável que não tenha dito. Primeiro, porque o estatuto social do cadáver é… ser cadáver e daí não podemos sair. E que os cadáveres se tenham tornado na morte aquilo que não foram em vida é, no mínimo, estranho, porque não há cadáveres vivos, quanto se saiba!... Em sentido real, entenda-se, porque no figurado até parece que – feliz ou infelizmente – andarão por aí bastantes!...
            Claro, o autor queria referir-se era aos mortos, aos indivíduos e não aos seus cadáveres! E aí tem razão: há pessoas que a morte vem transformar! Já lá dizia Celestino Costa, num dos seus poemas: «Prós poetas, Pátria querida / És madrasta toda a vida / Só és mãe depois da morte!». E com frequência se observa: «Olha, aquele foi preciso morrer para lhe darem importância!». Por isso, Herberto Hélder, recentemente falecido, sempre disse que não queria louvores em vida nem depois de morto!...
            Este caso levou-me, contudo, a reflectir sobre o facto de tantas vezes usarmos expressões sem sentido. Já não me refiro ao ããã… que antecede tantas frases e que só sai porque a boca está aberta. E admiro-me como, em televisão e rádio, isso não seja insistentemente corrigido, porque, além de nada significar, incomoda!
            Coligi, duma assentada:
            «A colectividade tinha uma sede e mais não sei o quê!»
            «Não sei se estás a ver…»
            «Dá-me aí o coiso!»
            «Então, vá!»
            Todas elas são uma maravilha, a denotar grande falta de rigor do pensamento e imprecisão vocabular. Agora, o «então, vá!» com que se terminam tantas conversas é, para mim, o máximo!... Então… vá! Vá para onde, senhores? Não estão a mandar o interlocutor a nenhum sítio esquisito, ora não?

                                                                                  José d’Encarnação

Publicado em Renascimento (Mangualde). nº 660, 15-04-2015, p. 12.

1 comentário:







  1. Teresa Silva Ontem às 9:01
    Delicioso, é tão bom ler português verdadeiro, tão rico, diverso, auto-explicativo e versátil! Até me dá arrepios ouvir os comunicadores dos media atuais, principalmente os pseudo-lisboetas, que atrofiam as palavras na boca e usam um vocabulário perfeitamente anoréctico... Enfim obrigada pelas suas crónicas, beijinho de Coimbra.

    Comentário meu: Beijinho retribuído, Teresa!

    ResponderEliminar