Os Olhos do Jacaré é mais um desses lancinantes
gritos, a chamar a atenção para uma realidade que importa consciencializar, a
fim de, na medida do possível, a tornar menos dolorosa. O fantasma de uma
guerra imposta, bem no sabemos – que não vale a pena dizer mais.
Rogério
Pires de Carvalho, de gata ao colo e olhar quase macambúzio na capa, conta-nos
como é. Se em Alenterra (2010) nos
fez mergulhar nas mágoas de campanhas na frente de combate, aqui as magias são
outras, em olhar bem acutilante sobre quem estamos a ser depois disso, a
tentar-nos safar-nos, como o homem dos escorpiões, que já foi vendedor de uma
catrefada de coisas e, se calhar, um dia, até vai vender banha-da-cobra; a
tentar sobreviver («ó meu furriel, então o que é que faço aqui com o coto, que
esta porcaria nem para tocar-ao-bicho serve, só serve mesmo para fazer cornos
aos outros quando afinal quem foi corneado pela sorte foi aqui o nove, foi ou não
foi meu furriel?» – p. 83); a tentar recordar mas em catarse («quem é a besta
do teu capitão, ó cabo?» – p. 47); a tentar gozar com superstições e esquemas;
a sentir-se, afinal, monstro que a longa noite gerou («A metamoforse», p.
85-89).
Contos,
no geral, breves, cativantes, muito do nosso dia-a-dia. Avesso a teorias, eu,
não sei filiar Rogério Pires de Carvalho em determinada corrente literária ou
se copiou doutrem a sua moda de escrita. Nem me interessa, confesso. Sei que gosto,
exactamente por isso, por ser «muito do nosso dia-a-dia», tu cá tu lá, sem
pretensos rodriguinhos literários, ainda que – hemos de reconhecer! – há densa literatura
ali.
O
fino e mui atento escalpelizar de vidas quase paradigmáticas já, todos
conhecemos algo de parecido, onde um certo ‘realismo mágico’ acaba por ser uma
forma de cada um de nós, em determinado momento, fugir da realidade e inventar
uma outra, em que demos largas à imaginação. Facilmente nos metamorfoseamos!...
O
conto «O nove» pode constituir o exemplo de como se diz tanto em tão poucas páginas
(p. 81-83), a linguagem oral ganha relevo e a pontuação, a pôr-se, só iria
mesmo atrapalhar. Ora imagine-se o pobre do já referido moço a quem o deflagrar
de uma mina apenas deixara dois dedos na mão e a ter que fazer a continência.
Assim:
«‒ ó pá, meu furriel, o major veio de lá
furioso, aos berros comigo, a insultar a minha mãezinha, a dizer que eu estava
a gozar com a hierarquia, o major berrava pela PêÉme, um alvoroço em Santa
Apolónia que só visto, e eu a gozar o pratinho por dentro, por fora sem
desfazer a continência, só os dois dedinhos espetados junto à testa […]» (p.
82-83).
Cenas da guerra e do pós-guerra
Rogério
Carvalho retrata cenas da guerra, cenas do após-guerra, a vida na cidade, a
vida no campo, tudo com um olhar certeiro, numa minúcia de pormenores que não
escapam a quem passa pela vida sem dela desprezar um ápice e de tudo se dando
conta:
«Os
panos-higiénicos estavam pendurados num estendal improvisado, uma corda de
sisal unindo duas palmeiras, uns estreitos rectângulos de pano turco com duas
tiras de nastro cosidas nas extremidades. Cheiravam a lixívia e as mulheres
estendiam-nos às escondidas para evitarem as perguntas embaraçosas dos miúdos»
(p. 115).
E
o retrato da vida na caserna em «Os dois Rogérios» (p. 53-56), onde uma frase
martelada aparece num crescendo, como que impertinente refrão no final de cada
parágrafo:
«Que
a hierarquia queria uma carne obediente»
«A
hierarquia queria que a carne fosse rija»
«... para a hierarquia, a carne se queria
ousada»
«…
nestas coisas dos sonhos, a hierarquia não sabia de que forma impregnavam as
carnes»
«Que
a hierarquia queria uma carne afinada»
«Que
a hierarquia queria a carne temperada neste vaivém»
«Tinha
razão a hierarquia, que sabia não ser a carne toda igual»
«Porque
como as hierarquias tinham premeditado, a carne passara a ser dócil e servil».
Quatro
páginas, em que – está bem de ver-se!... – os vocábulos ‘hierarquia’ e ‘carne’
reflectem superiormente uma obsessão.
Da
biografia do autor vamos sabendo aqui e além, mormente no último conto «Página
em branco», que traz, por exemplo, a referência ao Natal, «indigestão dos
fritos e das hipocrisias»… Rogério escreve ‘ainda’ com caneta de tinta permanente,
na mão direita, «sentado a uma velha mesa de mogno escuro com pernas torneadas
e quatro gavetas de tamanhos diferentes emparelhadas duas a duas» (p. 121);
foi, dos dois, o Rogério «de baixo»; e furriel miliciano enfermeiro…
Os Olhos do Jacaré, edição da Sinapis,
Janeiro de 2015, 126 páginas. ISBN 978-989-691-333-5.
José d’Encarnação
Publicado em Cyberjornal, edição de 06-04-2015:
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