quarta-feira, 1 de abril de 2015

Diário de um senhor em ‘dia não’

             – Toma o pequeno-almoço em silêncio.
            – Rejeita a hipótese – por que tanto ansiara! – de ir fazer uma caminhada e, de passagem, comprar a planta desejada.
            – Nenhuma das ementas dos restaurantes próximos lhe agrada e declara que não quer almoçar. A companheira, porém, numa de faz de conta, prepara almoço a contar com ele – que, no último momento, sem uma palavra, se decide a comer também. Se o petisco estava bom ou não – nada diz.
            – No momento de sair às compras, olha para a companheira: «Já viste como estás? Isso nem é trajo de ir prá praia! Ou te mudas ou não vais comigo!». A companheira foi mudar-se.
            – Ao pegar no carro, não mede bem as distâncias e bate com o retrovisor na parede: «Qualquer dia, o carro vai prá sucata!», diz-lhe a companheira mal-humorada.
            – Na estrada: «Já viste a que velocidade vais?».
            – Para cúmulo, na única compra que foi fazer sozinho, nem reparou no que comprara. Só em casa é que se apercebeu que a mercadoria vinha trocada.
                                                                            
            Quanta vez, no final do dia, ao ajeitarmos o lençol sobre os ombros, se faz o balanço da jornada e nos damos conta de inúmeras cenas destas a polvilhá-la de pontos negros. Não daqueles, sebáceos, que nos aparecem nas costas e até proporcionam um minuto de mui terna atenção «espera aí, que tens aí um ponto negro e eu tiro-o!»; depois da extracção, «olha como era grande!» e um beijo grato. Não, os pontos negros, aqueles, são de outro género e, se nos descuidamos, se os não extraímos, vão sub-repticiamente crescendo, construindo um muro pedrinha a pedrinha. E nós somos contra os muros inoportunos, como o de Berlim e quejandos.
            Fala o Povo: «Grão a grão enche a galinha o sarrão». Uma concepção positiva. Mas também amiúde se exclama: foi essa a gota que fez transbordar o copo! Esta, uma conotação geralmente negativa – que, depois disso, veio a desgraça!...
            Moral das nossas pequeninas histórias diárias: há que encher o sarrão de coisas boas e pôr no lixo, higienicamente, o que, de facto, não presta!
                                                                      José d’Encarnação

Publicado em Renascimento (Mangualde) nº 659, 01-04-2015, p. 12.

 

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