Essa,
a primeira imagem que me ocorreu quando aceitei de bom grado o pedido da
comissão organizadora da homenagem a Helena Frade para organizar este opúsculo
e alinhavar sobre a Amiga um depoimento. Decerto muitos outros amigos quereriam
estar aqui presentes; estes foram, porém, aqueles de que nos lembrámos agora –
e peço desculpa pelos naturais esquecimentos. Assevero, porém, que tenho a mais
funda convicção de que todos se irmanariam também não apenas em mostrar a
pétala religiosamente guardada, mas, de modo especial, em prontamente colaborar
na vistosa composição de mui sentido ramalhete que nestas páginas se ostenta.
Quando
nos apercebemos de que, embora lindas, as flores murcham, rápidas, sobre a
terra fresca da sepultura, olhamos para o canteiro e pedimos-lhe que perpetue
na pedra uma grinalda, um botão, uma coroa – que eternidade exigimos na dor e
na ternura!... Um livrinho como este, ainda que de modestas proporções, é
grinalda esculpida, botão sempre viçoso, precioso escaninho de saudade…
Nunca
chegaste a ser, oficialmente, minha aluna; contudo, ao recordar os meus
primeiros tempos em que, na mesa grande do Instituto de Arqueologia, nos
‘fundos’ da Faculdade, todos nos sentávamos, docentes e estudantes, numa
partilha de conhecimentos, de conversas, de vidas, a imagem da Lena Pequena e
da Lena Grande surge de imediato.
Não
andarei longe da verdade se disser que, ali, nessa segunda metade da década de
70 do século XX, também encetámos uma revolução no relacionamento mais próximo
entre docentes e estudantes. Aliás, tivera eu a dita de ir leccionar a alunos
que eram quase da minha idade, alguns, já, como eu, pais de filhos e filhos da
mesma idade dos meus. E o entusiasmo pela História Antiga, pela Arqueologia,
pela Epigrafia (que então passara a ter, por mui lúcida proposta do Doutor
Alarcão o estatuto de disciplina anual). E também tu, Leninha, ainda que não
aluna, por essas ‘pedras com letras’ te acabarias por deixar seduzir e, assim
que o Ficheiro Epigráfico surgiu, lá
veio o teu artigo, em 1982, logo no nº 2, sobre uma estela funerária do Crato.
Foi o teu primeiro artigo em letra de forma, não foi?
Recordo
o entusiasmo com que aí, no Crato, a terra natal do Zé Carlos, te entregaste à
escavação da necrópole da Lage do
Ouro, um trabalho modelar, a ombrear com o que, anos antes, a equipa do
Instituto levara a cabo em Santo André (Montargil)… Lembro-me quanto admirei a minúcia
como tudo nos apresentaram e as conclusões inovadoras que daí foi possível
retirar. E logo o Zé Carlos se revelou aquele ‘menino’ de um rigor no desenho e
no trabalho. Estavam, também nessa atitude científica, irmanados por completo. Tornaram-se
autores de referência obrigatória no que concerne às práticas funerárias
romanas.
Como
técnica do Serviço Regional de Arqueologia da Zona Centro, demandaste, com José
Beleza Moreira, S. Pedro do Sul. As termas. E – como não podia deixar de ser –
toda a problemática do aproveitamento das águas termais ao longo dos tempos te seduziu.
E, mais uma vez, o teu nome passou a referência a nível peninsular (e não só),
de modo que foste convidada a ser a representante portuguesa no grupo de
peritos que por essas questões expressamente se interessava: o Grupo de Trabajo
ATA – Atlas de Termalismo Antiguo, com sede em Madrid.
Com
Clara Portas foste para Bobadela – e correu mundo a descoberta do anfiteatro! E integraste, por via disso, o Réseau
Européen des Lieux Antiques de Spectacle. Demandaste Centum Cellas – e as reflexões que o teu
meticuloso labor determinou geraram mui proveitosa polémica. Ah! E o
extraordinário altar erigido pela civitas
Cobelcorum ao deus maior dos Romanos, que permitiu (além de a vossa cadela
ter sido «Cobelca»…) fazer jorrar inesperada luz sobre o que se (des)conhecia
acerca das organizações pré-romanas dessa Beira Interior?!... E o excitante lararium, ainda de Centum Cellas?!...
Não hesitei, pois,
em propor a Attilio Mastino que te convidasse a participar em Cartago, no XI
Convegno Internazionale di Studi L’Africa Romana, cujo tema era "La
scienza e le tecniche nel Mediterraneo classico", e tu apresentaste aí uma
comunicação, que foi muito bem acolhida, sobre técnicas construtivas de monumentos
da Lusitânia. Ana e eu e Catarina Leal bem recordamos esses dias de Dezembro de
1994 e as singulares peripécias nas lojas de Sidi-Bou-Saïd!...
Entretanto,
viera – muito antes!... – a experiência ímpar de S. Cucufate, a grande Escola
que nos foi proporcionada no fim da década de 70 e primeira metade dos anos 80.
Escola de Arqueologia, escola de Vida, alfobre de cumplicidades que fomos
mantendo vida afora! S. Cucufate, também esses uns Verões que jamais se
esquecem. E eu, que fazia de vez em quando o caderno de campo com Françoise
Mayet, posso atestar quanto eras rigorosa na metodologia seguida,
minuciosamente anotando tudo, mesmo que não fosse romano, porque sabias que um
sítio tem um antes e tem um depois…. E viviam-se em comum praticamente as 24
horas do dia. Por vezes, após a quente jornada, a caneca de ‘saboroso néctar’ a
escorrer das grandes talhas, na adega dos irmãos Parreira, em Vila de Frades, com
um bom naco de queijo e aquele pão que não nos cansávamos de saborear! Ah! Fresquinho
Vidigueira de tom levemente rosado!... Sabes, Lena, ainda guardo o papelito de
rascunho em que o Chefe anotou a «Constituição da equipe portuguesa» em 1981: lá
vem o teu nome, com a indicação «professora do ensino secundário»!
Visitámos-te
no hospital aquando da última operação a que tiveste de ser submetida. Desses
momentos, recordo a tua vontade de aproveitar o tempo, de «dar a volta por
cima». Senti que, vinda a forçada aposentação, haveria necessidade de maior ânimo
ainda para reformulares o dia-a-dia, sem o aguilhão dos processos, dos
pareceres, das reuniões, das ‘inspecções’ em que as horas se esgotavam e te
esgotavam, impedindo a dedicação a uma investigação a que mais gostarias de te
entregar.
Assim
não aconteceu, Lena! E partiste mais cedo do que todos esperávamos. Sugeriu Escrivá de Balaguer: «Que a tua
vida não seja uma vida estéril. Sê útil. Deixa rasto». Descansa em paz, Lena: a
tua vida não foi estéril! Foste útil, deixaste rasto! E nós vamos sempre
recordar as tuas inconfundíveis gargalhadas, assim como – desculpa lá, mas isso
também é bom!... – as alfinetadas que não hesitavas em dar! Alfinetadas e
gargalhadas tudo fazia parte de uma vida, que foi curta, bem no sabemos, mas…
deixou rasto!
José d'Encarnação
in ENCARNAÇÃO (José
d') [coord.], Helena Frade, Sociedade dos Amigos do Museu de Francisco
Tavares Proença Jr., Castelo Branco, 2015, p. 20-22.
Julia Fernandes
ResponderEliminar16/4 às 22:20
Um texto muito bonito e muito sentido.