segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

Fomos expulsos do Paraíso... e o estado a que isto chegou!

           Confidenciava-nos Carlos Avilez, na noite de estreia, que Miguel Torga, quando veio ver a peça «O Mar», também de sua autoria, lhe dissera que muito gostava que ele levasse à cena era «O Paraíso». Lá teria as suas razões, certamente porque a obra reflectia as suas angústias, o resultado das suas reflexões acerca do Homem e da sua passagem por este mundo. Isso seria. Carlos Avilez, porém, demorou a fazer-lhe a vontade e só agora ousou pôr em palco «O Paraíso», talvez porque, inconscientemente ou não, lhe pareceu ser esta a época apropriada para fazer as personagens dizerem o que dizem, mostrarem… o estado a que isto chegou e não apenas simplesmente porque Eva seduziu Adão e ambas comeram da maçã proibida.
            Hoje, comem-se as maçãs e não há castigo assim; hoje, também se mata sob pretexto de vir a receber uma herança; hoje, também nos digladiamos no dia-a-dia com duas consciências em forma de gente que nos vêm atazanar o juízo para o bem e para o mal e quando queremos conversar e trocar razões e encontrar caminhos, ei-las que desapareceram – qual água do rio que, como escrevia o imperador romano Marco Aurélio, mal anuncia a sua chegada, ei-la que já lá vai…
            Difícil encenação, esta, a exigir um cenário quase desnudado, poucas personagens em cena, a palavra a valer tudo o que vale, mas a transmitir eloquente mensagem.
            Escreve Carlos Carranca, no singelo programa (que traz também emotiva homenagem de João Vasco a Santos Manuel, que há bem pouco nos deixou), que «esta é uma peça nuclear na dramaturgia de Torga», porque, «escrita nos anos 40», fala do «homem absolutamente homem em confronto com Deus, absolutamente Deus». E Carlos Carranca tece ainda outras considerações filosóficas, em texto breve mas denso; contudo, o melhor é mesmo ver o espectáculo, para se perceber mais cabalmente o que, afinal, resultou desse atirar de Adão e Eva pela escada abaixo, porque, um dia, quiseram ter a pretensão de ir além das suas possibilidades.
            «Ir além das suas possibilidades». Fomos. Temos ido. E demos com os burrinhos na água. E estamos a sofrer as consequências, oh! se estamos! Não poderia este «Paraíso» vir, pois, em tempo mais oportuno, para ver se ainda há alguma emenda.
            Três actos, três momentos de vida – qual juventude, idade adulta e velhice –, dos quais o último, o da cadeira de rodas, das paciências que ajudam a matar o tempo, dos remédios que não se querem tomar, da literatura que é toda ela subversiva, do futuro que já deixou de existir, das aves agoirentas que volteiam e revolteiam derredor....
            Sim, logo quando os dois, Adão e Eva, são expulsos («Aqui, diante de mim, eu, pecador, me confesso de ser assim como sou. Me confesso o bom e o mau que vão ao leme da nau nesta deriva em que vou»…), há como que um estranho jardim zoológico à sua espera, numa algaraviada que mal se entende, a não ser que por ali reina a confusão, o alarido, há aí alguém que entenda isto?...
            A enorme sobriedade da encenação e a nudez do cenário obrigam-nos a ouvir, a ver as personagens que nos passam diante, a deixar mensagens: «A beleza nada representa se não tiver nada dentro de si»; «Somos todos prisioneiros de um tempo qualquer»; «A moral do poder é sempre intolerante»; «Ninguém sabe pró que nasce!»; «Esta gente rica que não tem consideração por ninguém», «A humanidade sem a muleta da impostura… que seria dela?».
            Apreciei, de modo especial, a interpretação de António Marques, o Adão velho; mas todos os elementos da companhia vão muito bem, em papéis que não são fáceis: Anna Paula, Teresa Côrte-Real, Luís Rizo, Fernanda Neves, a que se juntam Renato Pino, Sérgio Silva, David Balbi, Nazareth Almadanim, Carlos Trindade, Miguel Ferraria e João Reis. A versão e a dramaturgia (nada fácil!) são de Miguel Graça; Fernando Alvarez assina, como é habitual, a cenografia e os figurinos; Manuel Amorim dirigiu a montagem…
Estiveram presentes na estreia, quinta-feira, dia 5 (uma noite bem desagradável e de algumas cheias na Grande Lisboa….), o presidente da Câmara e Eunice Muñoz (já felizmente recuperada e a anunciar-nos que voltará a fazer «O Comboio da Madrugada»), entre outras individualidades.
O espectáculo estará em cena no Mirita Casimiro até dia 30, de quarta a sábado, às 21.30 h; ao domingo, às 16 h.

Publicado no Cyberjornal, edição de 9-12-2012:



            Fotos gentilmente cedidas por Pepita Tristão. Bem haja!

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