Hoje, comem-se as maçãs e não há
castigo assim; hoje, também se mata sob pretexto de vir a receber uma herança;
hoje, também nos digladiamos no dia-a-dia com duas consciências em forma de
gente que nos vêm atazanar o juízo para o bem e para o mal e quando queremos
conversar e trocar razões e encontrar caminhos, ei-las que desapareceram – qual
água do rio que, como escrevia o imperador romano Marco Aurélio, mal anuncia a
sua chegada, ei-la que já lá vai…
Difícil encenação ,
esta, a exigir um cenário quase desnudado, poucas personagens em cena, a
palavra a valer tudo o que vale, mas a transmitir eloquente mensagem.
Escreve Carlos Carranca, no singelo
programa (que traz também emotiva homenagem de João Vasco a Santos Manuel, que
há bem pouco nos deixou), que «esta é uma peça nuclear na dramaturgia de Torga»,
porque, «escrita nos anos 40», fala do «homem absolutamente homem em confronto
com Deus, absolutamente Deus». E Carlos Carranca tec e
ainda outras considerações filo sóficas,
em texto breve mas denso; contudo, o melhor é mesmo ver o espectáculo, para se perceber
mais cabalmente o que, afinal, resultou desse atirar de Adão e Eva pela escada
abaixo, porque, um dia, quiseram ter a pretensão de ir além das suas
possibilidades.
«Ir além das suas possibilidades».
Fomos. Temos ido. E demos com os burrinhos na água. E estamos a sofrer as consequências,
oh! se estamos! Não poderia este «Paraíso» vir, pois, em tempo mais oportuno,
para ver se ainda há alguma emenda.
Três actos, três momentos de vida – qual
juventude, idade adulta e velhice –, dos quais o último, o da cadeira de rodas,
das paci ências que ajudam a matar o
tempo, dos remédios que não se querem tomar, da literatura que é toda ela subversiva,
do futuro que já deixou de existir, das aves agoirentas que volteiam e
revolteiam derredor....
Sim, logo quando os dois, Adão e
Eva, são expulsos («Aqui, diante de mim, eu, pecador, me confesso de ser assim como sou. Me confesso o bom e o mau que
vão ao leme da nau nesta deriva em que vou»…), há como que um estranho jardim
zoológico à sua espera, numa algaraviada que mal se entende, a não ser que por
ali reina a confusão, o alarido, há aí alguém que entenda isto?...
A enorme sobriedade da encenação e a nudez do cenário obrigam-nos a ouvir, a ver
as personagens que nos passam diante, a deixar mensagens: «A beleza nada
representa se não tiver nada dentro de si»; «Somos todos prisioneiros de um
tempo qualquer»; «A moral do poder é sempre intolerante»; «Ninguém sabe pró que
nasce!»; «Esta gente rica que não tem consideração
por ninguém», «A humanidade sem a muleta da impostura… que seria dela?».
Apreciei, de modo especial, a
interpretação de António Marques, o
Adão velho; mas todos os elementos da companhia vão muito bem, em papéis que
não são fáceis: Anna Paula, Teresa Côrte-Real ,
Luís Rizo, Fernanda Neves, a que se juntam Renato Pino, Sérgio Silva, David
Balbi, Nazareth Almadanim, Carlos Trindade, Miguel Ferraria e João Reis. A
versão e a dramaturgia (nada fácil!) são de Miguel Graça; Fernando Alvarez assina,
como é habitual, a cenografia e os figurinos; Manuel Amorim dirigiu a montagem…
Estiveram presentes na estreia, quinta-feira, dia 5
(uma noite bem desagradável e de algumas cheias na Grande Lisboa….), o
presidente da Câmara e Eunice Muñoz
(já felizmente recuperada e a anunciar-nos que voltará a fazer «O Comboio da
Madrugada»), entre outras individualidades.
O espectáculo estará em cena no Mirita Casimiro até
dia 30, de quarta a sábado, às 21.30 h; ao domingo, às 16 h.
Publicado no
Cyberjornal, edição de 9-12-2012:
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