Confesso-me inculto
de literaturas. Sempre privilegiei a vida, as histórias reais e mesmo as telenovelas
– embora saiba da sua carga pedagógica e social – não me seduzem por aí além,
pois se me afigura o quotidiano muito mais rico de peripécias e conteúdos.
Por
isso, era incapaz de escrever o erudito prefácio com que José Manuel Vasconcelos
apresentou este livro, em cujos contos reconheceu, por exemplo, a existência de
«uma trave brandoniana». Acredito mui piedosamente que o Autor possa ter-se inspirado
na passagem X do famoso escritor Y; contudo, para mim, Rogério Pires Carvalho é
o «rapaz» de vida atribulada como todos os que nascemos no pós-guerra e comemos
o pão que o Diabo amassou e vivemos a guerra d’África e sonhámos com um 25 de
Abril: põe no papel essas atribulações por que passou, os sonhos acalentados,
numa linguagem em que o cenário urbano inteiramente se entrelaça com cenários campesinos
de uma infância longínqua e cenários fantásticos de parvoíce pegada.
«Parvo»
é, em latim, ‘pequeno’, no sentido real – e são-no , de um modo geral, pequenas
estas vinte histórias apenas numeradas, sem título nem índice –, e ‘pequeno’ no
sentido figurado, porque relatam casos… pequenos!
E
o facto de o Autor não ter querido sequer propor títulos – crítica velada a já
não haver pessoas mas números?... – poderá interpretar-se também como uma forma
de querer deixar essa tarefa ao leitor, não o sugestionando sequer.
Autobiográfico?
– Sim. Romance de costumes? – Sim. Parvoíces? – Porque não?
Sugestiva
a fotografia da capa, a que não há qualquer referência nem no texto nem na
ficha técnica: dois cavalheiros, de uma burguesia média-alta datável de meados
do século XX, chapéu de feltro de copa redonda, farto bigode, bengala, apertam
a mão e posam para o fotógrafo. Foto de estúdio, com cenário de indefinida
paisagem sépia detrás. Quem são e o que nos querem dizer?
Mais
eloquente será a primeira badana, em que o autor preferiu deixar-se fotografar
com o seu cachorro de estimação . Eco
daquele aforismo (cuja paternidade vi atribuída a Blaise Pascal) «quanto mais
conheço as pessoas, mais gosto do meu cachorro»?
Creio bem que sim, dado o tom geral das histórias, em que, por exemplo, é a
maçã a comer o homem (cansado de «ofícios inúteis» e «despachos absurdos» – p.
91) e as férias numa praia tropical terminam porque o crocodilo engole o zeloso
funcionário, o qual, mesmo deglutido, «ia imaginando os termos exactos que
deveria usar no oficio a endereçar à agência de viagens, dentro do prazo legal
das reclamações» (p. 108), porque ser engolido por crocodilo não estava
previsto no contrato devidamente assinado. Ironia mordaz, feroz sarcasmo,
deliciosa viagem para um dia-a-dia mui frequentemente sem qualquer sentido como
o daquela CAIXA DE SUGESTÕES que, à porta
do serviço de urgências do hospital, se transforma, a dado passo, com a usura
do tempo, em CAIXA DE S. CESIO e, consequentemente,
desata a receber piedosos óbolos, cujo destino, obviamente, se (des)conhece (p.
13-16).
Os
retratos da vida rural obrigam-nos a consulta de dicionário, porque a palavra é
a exacta e dentro do contexto. Outras vezes, porém, essa consulta deriva de
provocada dúvida de grafia, porque, aparentemente, o editor não se ralou em apresentar
o livro com um número de gralhas superior ao que seria razoável em edição que se preza.
Hino ao
absurdo da vida que nos obrigam a ter? Hino, não: libelo contra!
«A terra está
a morrer, eu estou a morrer, está tudo a morrer por aqui de roda. Só ficaram os
velhos, para aqui à espera de morrer, os novos foram-se, abalaram, voltam
velhos, quando voltam, o mais certo é não voltarem, já ninguém se quer chegar a
estas terras de maldição. Ainda se fossem terras dos vales, terras fundas,
terras gordas como mantas de toucinho, terras de barros a agarrarem-se às solas
das botas como côdeas de trigo, isso era vê-las a dar, a darem tudo o que se
lhes quisesse deitar» (p. 64-65).
Quem o
garante, porém? De «terras de maldição »
depressa são capazes de voltar a ser – pelo caminho que isto leva – «terras de
salvação ». Eu cá aposto nessa! E, desta
sorte, poderia ganhar sentido a foto da capa: vamos preservar a tradição ! Já! Antes que o crocodilo ou a maçã venham aí e
nos engulam!
Publicado em Cyberjornal, edição de 11-07-2013:
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