Recordo-me
de – a propósito de Roman Portugal,
de J. de Alarcão (in «O domínio romano em Portugal. Notas
sobre um livro recente», Homenaje a José
Mª Blázquez (Hispania Romana II) – vol. V, Madrid, 1998, p. 138) – eu ter considerado ser essa uma «obra
corajosa, pois no momento em que sai à luz do dia ela se encontra
desactualizada». Na verdade, ao termos reunidos os dados sobre determinado
tema, mais fácil nos é verificar que falta isto ou falta aquilo. Como quando se
sobe a um monte: lá do cimo, até se descobre que havia caminho mais fácil e…
quão mais amplo é, agora, o horizonte!...
Assim,
este livro de Lídia Fernandes, Tabuleiros
de Jogo Inscritos na Pedra, valiosa edição da Apenas Livros (Lisboa, 2013,
ISBN: 978-989-618-411-7), 321 páginas ilustradas (Fig. 1). Trata-se de Um Roteiro Lúdico Português, porque esses traços, amiúde
grosseiros, amiúde fáceis de passar despercebidos a quem para eles não está
desperto, consubstanciaram, de facto, muitas horas de lazer e de
entretenimento, para «matar o tempo», para cimentar comunidade…
Um
roteiro que é também, por outro lado, essa lição de, a todo o tempo,
aprendermos que importa estarmos humildemente despertos para um fenómeno que,
devemos confessar, nos não despertou atenção e, por isso, com duas penadas o
descartámos. Contra mim falo, porque, ao aceitar para publicação o estudo,
feito por um dos meus estudantes, de uma estela funerária romana identificada,
em reutilização, em Pinheiro de Tavares (Mangualde), não reparei bem no que a
foto mostrava (Fig. 2)
nem na descrição que Luís Filipe Coutinho Gomes fizera:
«Na
parte inferior da estela foi gravada uma espécie de grelha composta por quadrados
com aproximadamente 5,5 cm
de lado, em três filas sobrepostas de oito quadrados cada» (Ficheiro Epigráfico nº 12, 1985,
inscrição nº 53).
Quem
haveria de dizer que, todos estes anos volvidos, eu iria encontrar a imagem dessa
epígrafe aqui neste livro (fig. 110), com o nº 15 (p. 98-99)? Não se nos pusera
a questão de estarmos perante eventual tabuleiro de jogo e verifico – com
alívio… – que também à autora essa hipótese interpretativa se afigura de
abandonar, «apesar da regularidade dos traços e do cuidado do lapidarius»:
«Pensamos ser uma decoração,
curiosa e inusitada, é certo, mas, ainda assim, um simples motivo decorativo»
(p. 98).
Mas
a questão foi levantada – e ainda bem! Aliás, pela semelhança, somos agora
convidados a retomar a reflexão feita sobre uma outra peça epigrafada (Fig. 3), identificada no
termo de Beja, a Pax Iulia romana,
que sugerimos tratar-se do esquema de um cadastro romano (Lopes, Maria Conceição; Encarnação, José d'; e Silva, António J. M., «Un cadastre romain dans la région de Pax Iulia (Lusitanie)?», L’Africa Romana, 12, Sassari, 1998, p. 879-884:
http://hdl.handle.net/10316/22778):
estaremos, ao invés, perante complexo tabuleiro de jogo?
Enquanto
na peça de Mangualde, o quadriculado é, seguramente, contemporâneo da epígrafe
e, por isso, com mais facilidade se assume o carácter decorativo, na placa de
Beja há um reticulado complexo e a inscrição
não é contemporânea, pois esse reticulado a ela se sobrepôs. Um tema, por
conseguinte, a debater!
Duas das missões de um livro
científico estão, consequentemente, aqui já bem consubstanciadas: levar a
observar muros e pedras com outros olhos e a procurar completar o que ora se
apresenta em termos de alguma exaustividade, ainda que se diga que esta é
apenas uma «parte de um riquíssimo património» «quase totalmente desconhecido».
De resto, a própria autora o confessa:
«Ficou
a gigantesca certeza do muito que há por fazer e dos inúmeros aspectos de
análises que ora se abrem» (p. 7).
Resultado
de sete anos de investigação (que
naturalmente também se apoia em investigação
alheia desenvolvida há décadas); fruto da ampla colaboração
de preciosos informantes (que são referidos) – a obra foi apoiada pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia, no âmbito do
projecto sobre a História dos Jogos em Portugal, dentro do qual recentemente
beneficiámos de mais uma, também excelente, publicação
(Fernanda Frazão, Fontes para a História
dos Jogos em Portugal, Apenas Livros, Lisboa, 2012) e já havíamos tido, em
2010, uma outra da mesma autora e editora, História
das Cartas de Jogar em Portugal e da Real Fábrica de Cartas de Lisboa do século
XV até à Actualidade.
Divide-se
o livro em 12 capítulos, antecedidos pelo índice, com o que me congratulo. Começa-se
por explicitar como se fez e deve fazer o registo; e esclarece-se desde logo
que, por detrás do jogo, está o Homem, o seu pensamento, porque os jogos, além
de serem expressões lúdicas, constituem também expressões simbólicas. O
capítulo 3 traça a história dos tabuleiros em pedra desde as referências mais
antigas até às épocas medieval e moderna. E antes do «passeio pelo património
de Norte a Sul», que é o capítulo 5, há que saber que tipos e que características
apresentam os tabuleiros de pedra: as tabulae
lusoriae dos romanos, o alquerque (dos 9, dos 12, dos 3), o ludus latrunculorum...
O
inventário obedece a um critério geográfico, por regiões: Norte, Centro, Lisboa
e Vale do Tejo, Alentejo, Algarve, Açores e Madeira. No Norte, destaca-se a Igreja
de Santa Maria da Oliveira (nº 5), com 17 tabuleiros; no Centro, o mosteiro da
Batalha (nº 33) tem 13; são 29 os tabuleiros na área de Lisboa; é, contudo, o
Castelo Velho de Alcoutim (estudado, como se sabe, por Helena Catarino) que
leva a palma, com nada menos que 37 testemunhos (nº 61 – p. 216-234)! Em relação aos Açores e à Madeira, há referências, mas nada
de concreto se apresenta.
Fala-se,
no capítulo 6, das pedras de jogar e, no 7, das técnicas de gravação dos tabuleiros, para ingressarmos no mundo do
lúdico, em íntima conexão com a sociedade, retomando, de certo modo, o que se
alinhava no capítulo 2. Esse capítulo 8 afigura-se-nos do maior interesse,
porque se parte do concreto para, como atrás se dizia, se descobrir o que lhe está
por detrás: a imitação do real, a
convivência do jogo com a religião, as regras, o jogo como atitude universal,
para se terminar numa perspectiva que a autora, como arqueóloga, não poderia
deixar de abordar: «o espaço construído e a actividade lúdica».
E
se o «como jogar» interessa, embrenhamo-nos logo de seguida e de novo no domínio
da abstracção , da estratégia que ao
jogo sempre está subjacente (e ouvimo-lo diariamente na Comunicação Social…); é este um capítulo, o 10º, assaz ilustrado,
da responsabilidade de Jorge Nuno Silva. Vem, por fim, a questão: será que é possível
traçar «uma análise evolutiva dos jogos de tabuleiros em território nacional»?
Apresentam-se gráficos, estatísticas (foram 253 os tabuleiros analisados!)…
A
vasta bibliografia (p. 307-321) documenta, por fim, não apenas que a autora se debruça
já há algum tempo sobre esta temática, mas também que, afinal, esse é um campo de
investigação deveras interessante, até
porque, desde cedo, como escreveu o Conde de Sabugosa (que volta a ser aqui
citado), os jogos «serviram de desfastio, de prazer ou de higiene aos nossos
antepassados» (p. 301). E, hoje, poderão servir também, desde que se queira!
Um
hábito que, no fim de contas, um passatempo (como diria o Padre António Vieira)
perdurou durante milénios! Veja-se que o jogo dos ganizes ou do cucarne – muito
vulgar, por exemplo, entre os pescadores até épocas bem recentes –, com vértebras
ou falanges, radica, sem dúvida, nos latrunculi,
que, a par das peças de osso, de pasta vítrea ou de cerâmica (Fig. 4) e mesmo os dados
de osso ou marfim (Fig. 5),
encontramos na escavação de sítios
romanos!
Este
Roteiro de Lídia Fernandes constitui,
pois, mui valioso contributo para essa consciencialização !
Acrescente-se
que a editora acabou por fazer um preço assaz convidativo (24 euros), a fim de
esta temática poder chegar a mais gente.
Publicado em Cyberjornal, 2013-03-31:
Sem comentários:
Enviar um comentário