Em «Aos leitores», texto datado de
Julho de 2009, explica a Autora como lhe surgiu a ideia de escrever este livro.
Aluna de D. Fernando de Almeid a na Faculdade
de Letras de Lisboa na década de 60, sendo natural de Idanha (nasceu em 1946), cedo
se deixou entusiasmar por esta sequência cultual que radica na veneração romana
pela divindade indígena Igaedus, cujo
ex-voto [Fig. 2], dedicado
por Caetronia Vitalis¸ fora
identificado pelo seu professor, justamente perto do santuário à Senhora do
Almortão, o que, de resto, motivara de imediato, por parte de D. Fernando de Almeid a, essa aproximação de cultos, explicável,
naturalmente, por o próprio lugar ter em si algo que se poderia considerar fora
do habitual, aquilo a que os Romanos chamariam o Genius loci, o «Génio do Lugar». Aquele «sempre foi, desde o
princípio dos tempos, “um lugar sagrado”», conclui.
De 176 páginas, tem o livro «introdução»
do Padre Adelino Américo Lourenço, prior de Idanha-a-Nova, que salienta como o
culto à Senhora do Almortão está visceralmente entranhado na «alma do Povo da
Idanha».
Divide-se a obra em duas partes mui distintas. Demonstra-se, na primeira,
«Água Murta – um lugar sagrado», a sacralidade do lugar (p. 11-63); dá-se conta,
na segunda, de todo um repertório poético – que facilmente integraríamos na
esfera do património imaterial – relativo à Senhora do Almortão.
Formada em História, docente de História e de Português ao longo da vida,
Joaquina Celestino dedica, pois, essa primeira parte a amplas considerações de
ordem histórica, linguística e etnológica para mostrar a originalidade não
apenas das gentes de Idanha mas de tudo o que sobremaneira as caracteriza, como
é esse culto mariano, elemento agregador, por excelência, ao longo dos tempos e
desde as mais remotas eras, e o próprio adufe, instrumento musical que, de
certo modo, lhes pauta o viver quotidiano.
Um livro ingénuo
«Ingénuo»
foi uma das primeiras palavras que me ocorreu para caracterizar o volume, dando
à palavra o seu significado concreto, sem qualquer laivo depreciativo. Por a
Autora ter aproveitado a circunstância para publicar as suas pinturas a pastel
plenas de ingenuidade, totalmente integráveis no que vulgarmente se designa por
pintura «naïve»? Não duvido que também isso pesou na minha classificação.
Aliás, perpassa por toda a maquetização essa ingenuidade, a denunciar a
inexistência por perto de um gráfico, de um revisor (escreve-se, na p. 163, que
Igaeditanorum equivale a dizer «da
tribo lusitana dos Igaedus»!...) ou de uma pessoa com alguns conhecimentos de
edição: os mapas, de tão pequenos, resultam ilegíveis; em contrapartida, a
título de exemplo, o desenho do jarro (que, com a devida vénia, reproduzo – Fig. 3) identificado como
«objecto egípcio» ocupa toda a pág. 29. Houve grande preocupação em tudo
ilustrar quer por meio de desenhos – os tais desenhos a pastel, naïfs – quer, sobretudo, com
fotografias, que são dezenas, umas clara mente
da autora, outras retiradas de livros, mas sem indicação de proveniência.
Integra-se Igaedus no rol das divindades que temos designado de indígenas, por
somente estar atestado o seu culto em local determinado e ostentarem designação
nitidamente pré-romana. Ora aqui reside toda a problemática em torno da qual
Joaquina Celestino se situa na I parte do seu livro, tomando como base da
argumentação autores que apontam, por exemplo, para a existência de uma língua
lusitana (sem aspas), mui provavelmente derivada de um idioma proveniente do
Médio Oriente.
Essa eventual ‘proximidade’ com o Médio Oriente leva-a, designadamente, a
salientar a existência de um culto à Deusa-Mãe e, de modo muito especial, à
deusa egípcia Ísis.
Como se sabe, a fonte primordial para o conhecimento desses cultos
durante o período romano são as epígrafes, os ex-votos que os fiéis mandavam
fazer em reconhecimento por um favor recebido. Que se conheça, não há, na epigrafia
da civitas Igaeditanorum, um
testemunho do culto a essa divindade, que, a nível do Império Romano e na
Lusitânia, era divindade especialmente querida por gentes urbanas, ligadas aos
negócios. Encontramo-la atestada em Bracara
Augusta, em Alcácer do Sal (Salacia),
em Beja (Pax Iulia), em ambientes
assaz cosmopolitas, como acontece, de resto, com esses cultos mistéricos. A
Grande Mãe dos Deuses era Cíbele, também de origem oriental – e desta
igualmente se não têm testemunhos na Idanha romana.
Compreende-se, pois, que, não
estando muito à vontade nestas temáticas, a Autora facilmente se deixe levar
pelo seu sentimento e lhe saiam, ao correr da pena, frases como esta:
«Por todo o decadente Império Romano
se assistiu ao «êxito histórico» da transformação dos cultos a Cíbele, a
Afrodite, a Vénus, a Múrcia e outras deusas pagãs que mais não eram do que
diferentes faces de Ísis, no culto a Maria, Nossa Senhora e Nossa Mãe» (p. 35).
Deixemos de lado o facto de Vénus e
Afrodite serem a mesma divindade, Vénus o nome latino, Afrodite o nome grego; e
Múrcia, uma das designações sob que Vénus foi invocada, relacionada com o facto
de a murta ser planta a ela consagrada, como o fora a Afrodite. Juntar todos
esses cultos sob a «capa» de Ísis e partir desta para o culto a Nossa Senhora
torna-se deveras alicia nte, mas… não
carecerá de comprovação? Não se poderá ver aqui o eco de pregações antigas em
que se procurava demonstrar como, afinal, os rostos podem mudar mas a essência
não muda? Como interpretar a afirmação «A Grande deusa dos egípcios esteve por
muito tempo em nosso solo» (p. 32)? Mormente se levarmos em linha de conta que,
logo de seguida, se cita Jean-Paul Bourre, autor do Dicionário Templário: «Os Templários a reverenciavam sob o nome de
Mãe Natureza e, depois, sob o nome de Nossa Senhora»…
Debruça-se Joaquina Celestino sobre
a etimologia do topónimo Almortão, que também escreve Almotão e Almurtão. Considera
que «parece aceitar-se ter origem em murtão, a moitão ou moutão ou, ainda,
moita de murta» (p. 38). Dá impressão que aceita essa derivação a partir do
nome da planta, quiçá abundante no local e à qual, por tradição, se atribuem
propriedades terapêuticas e não desprovidas também de um certo halo esotérico;
contudo, adverte logo a seguir: «Espero por último que não optem pela velha
tese de “começa por AL, é de origem árabe” mesmo quando referenciam nomes muito
anteriores às influências desse povo no nosso território. Ousem olhar mais
além…» (p. 42). De facto, na página anterior, faz referência ao termo «muttam», da língua tamul do Sul da
Índia, um idioma da família do indo-europeu (afirma), vocábulo que teria sido
«transposto para o português como “moutão”
(lugar onde há moitas, isto é, tufos de vegetação)»; e alude ao termo «mottam» do germânico antigo, com o
significado de «lugar alto, monte de terra»; e, ainda, ao provençal «moutton». Uma incursão, reconheça-se,
deveras sinuosa, quando se nos afigura norma l
que, tal como moitão é um lugar de moitas, murtão seja um lugar de murtas.
Quanto ao prefixo al-, equivalente ao artigo definido ‘o’, ele foi aplicado
pelos árabes a tudo o que era nome concreto, quer de objectos, quer de topónimos,
independentemente da etimologia da palavra e da sua filiação neste ou naquele
‘estrato linguístico’. Por conseguinte, em meu entender, não carecemos de
vaguear pelo Médio Oriente nem seguir pelo Malabar para se compreender que a
designação de Almortão (com o ou com
u) detém um significado físico
relacionado com o específico revestimento vegetal do lugar – sacralizado ou não
que ele seja.
Parece desconhecer a Autora o que
nesse domínio da religiosidade pré-romana se tem investigado, um domínio,
aliás, controverso e eriçado de não poucas dificuldades. Embrenhar-se assim
ligeiramente por elucubrações de ordem filo lógica,
num terreno hoje basto palmilhado pelos investigadores, que, inclusive,
periodicamente se reúnem nos colóquios sobre línguas e culturas
páleo-hispânicas (em Valência, decorreu, no passado mês de Outubro de 2012, o
XI da série, iniciada em Salamanca, em Maio de 1974), perdoar-me-á a Autora,
mas é, no modo como discreteia, ingenuidade que, todavia, se compreende,
atendendo à bibliografia a que teve acesso.
Um livro bem intencionado
A obra detém, no entanto, um interesse e uma actualidade flagrantes
quando a encaramos como repositório do que se denomina «património imaterial»:
as crenças, as festividades, a poesia popular… enfim, a alma de um povo nessas
manifestações bem retratada.
Foi, pois, intenção da Autora dar a conhecer não apenas o que era hábito
fazer-se em louvor da Senhora do Almortão, práticas prenhes de tradição e de
religiosidade, mas também as «novas quadras» que a devoção à Senhora lhe
inspiraram a ela e a outros também, verdadeiros «cantares de romaria», na
peugada da ancestral inspiração enraizada nas trovas medievais, eco, quiçá, das
Cantigas de Santa Maria, de Afonso X,
de Castela. Um cancioneiro que, desta forma, aqui se deixa impresso em letra de
forma, para que se não perca: «os louvores à Virgem, a Jesus e aos Santos; as
preces, os agradecimentos, mas também os namoros, as flores, as árvores, os
animais, as fontes, o ambiente que rodeia a ermida e até o próprio tempo que
fazia. Quem as canta são, de acordo com a tradição, as mulheres» (p. 72-73).
Quadras bem ao jeito popular, numa sequência a que não falta o refrão (qual
coro de vetustas representações teatrais!...), que, curiosamente, «na maior
parte dos casos, nada tem a ver com as quadras cantadas» (p. 73), mas se retira
de uma cantiga popular em voga e que bem presente está no ouvido das
cantadeiras. E sempre, sempre, a presença indispensável do adufe, instrumento
sobre que a Autora tece igualmente amplas considerações, não se esquecendo de
citar, na p. 60, passagens bíblicas em que esse instrumento é referido: «Maria,
a profetisa, irmã de Aarão, tomou um adufe, e todas as mulheres a seguiram, com
as mesmas atitudes, cânticos e danças», lê-se logo no Êxodo (15, 20), o primeiro livro do Antigo Testamento.
Para além do cancioneiro, um outro contributo deveras importante nos traz
este De Igaedo à Senhora do Alçmotão:
as ilustrações! Quer sejam as já referidas pinturas naïves da Autora quer, de modo especial, o acervo imenso de
fotografias, a documentarem todos os aspectos do lugar, as tábuas de milagres
(pena que de reduzida dimensão…) e todos os passos das manifestações religiosas
que em torno da Senhora se desenvolvem, uma Senhora cuja imagem é «de vestir» e
que, por conseguinte, faz questão em envergar os mais requintados e
magnificentes e valiosos mantos criados pelo desprendimento dos seus devotos (Fig. 4). Bem andou, por
isso, a Câmara Municipal de Idanha-a-Nova em patrocinar a edição.
Um
grito de alerta
Não
poderia, contudo, terminar esta apreciação crítica do livro de Joaquina
Celestino sem me fazer eco, mais uma vez, do que já se sabia, do que se sabe,
mas que… parece que continua a desconhecer-se! E há que recordá-lo, para que
depressa se tomem as medidas urgentes que se impõem. Não vale a pena pensar-se
na preservação do património imaterial se se esquece um outro, bem mais palpável,
que é o património arqueológico.
Conta Joaquina Celestino o que sempre ouviu: «as vozes dos que
trabalharam na construção do canal mestre que distribui a água da Barragem pela
campina» (p. 30). Refere-se à Barragem Marechal Carmona, no rio Ponsul,
inaugurada em 1946. E que contavam os trabalhadores? «Que pedaços de mosaicos e
cerâmica de variegadas cores apareciam, constantemente, à frente das
escavadoras; que também apareceram moedas e pequenas estatuetas; que tal
sucedia, já mais recentemente, quando se lavrava a terra fosse com arados ou
com tractores; que surgiam grandes potes de cerâmica…».
Trata-se de uma descrição do passado, dir-se-á, em que ainda não havia a
consciencialização (nem a lei!) de que «grandes empreendimentos públicos ou
privados que envolvam significativa transformação da topografia ou paisagem» (cito
uma passagem da Lei de Bases do Património Cultural, a Lei nº 107-2001, de 8 de
Setembro) têm forçosamente de se fazer com o devido acompanhamento
arqueológico. Sim, é do passado! No entanto, o importante, o grave é o que a
Autora escreve depois (p. 30), enterrando bem os dedos na ferida:
«Sei também que, ainda hoje, se apanha cerâmica pela campina fora; que
continua a aparecer mosaico romano à frente dos tractores que lavram as terras
e que há tambores de colunas em paredes, muitas, já em ruínas…».
E então? Vamos continuar assim?
Igaedus – divindade indígena,
que deu nome aos Igaeditani, povo que
teve cidade fundada, possivelmente no ano de 34 a . C., pelo procônsul Gaio
Norbano Flaco, a civitas Igaeditanorum,
que jaz sob o casario de Idanha-a-Velha –
cedeu seu lugar à Senhora do Almortão, padroeira também ela da fertilidade
agrícola da campina e da riqueza das suas apetecidas minas de ouro. Requer-se
hoje que, além da protecção espiritual, uma efectiva protecção político-administrativa
venha a concretizar-se.
Gostaríamos que Joaquina Celestino, que até foi orientadora de estágios
(daí a sua preocupação em apresentar, no final, explicações das fotos, uma
cronologia e um glossário), nos houvesse proporcionado obra com maior rigor histórico,
inclusive na forma de citar os autores consultados. Não teria sido
despropositado que houvesse incluído na bibliografia não só o livro clássico do
seu (e meu!) Mestre, D. Fernando de Almeida, Egitânia, História e Arqueologia (Lisboa, 1956), mas também um
artigo dele que esteve, decerto, na origem do seu entusiasmo – «Igaedus, divindade lusitana, e a Senhora
do Almortão» Revista da Faculdade de
Letras de Lisboa, 3ª série, 8, 1964, p. 65-73 – artigo que motiva um dos
seus desenhos naïfs (Fig. 5), mas que, incompreensivelmente,
não inclui na bibliografia da p. 165. Igualmente não se acredita que, idanhense
de gema, não haja tido conhecimento da obra de Ana Marques de Sá, Civitas Igaeditanorum: Os Deuses e os
Homens, editada precisamente pelo Município de Idanha-a-Nova, em 2007.
É, pois, uma obra que importava fazer, para desbravar terreno, para
levantar questões e, sobretudo, para registar um património imaterial sempre em
risco de se perder na época de matriz materialista em que estamos sobrevivendo.
Publicado em Cyberjornal, edição de 14 de Fevereiro
de 2013:
http://www.cyberjornal.net/index.php?option=com_content&task=view&id=17858&Itemid=30
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