O espólio do escritor Joaquim Ferrer vai ser
entregue à Faculdade de Letras – Departamento de Línguas, Literaturas e
Culturas, da Universidade de Coimbra. O acto de entrega está previsto para o
próximo dia 7, quinta-feira, pelas 14h30, na Sala dos Conselhos daquela
Faculdade. Na circunstância, usará da palavra o Doutor Carlos Reis, que
apresentará Joaquim Ferrer e a sua obra.
A notícia, dada desta forma, até pode passar
despercebida, que é como quem diz: «Mais um que não sabe onde pôr os livros!».
Contudo, uma leitura mais atenta poderá, afinal, provocar outra reacção,
mormente se atentarmos que estamos perante um escritor praticamente
desconhecido do actual grande público, mas que se insere na mais lídima corrente
do neo-realismo português, tendo sido, por isso, perseguido pela censura de
Salazar.
Nasceu Joaquim
Falcão Marques Ferrer (de seu nome completo) em Miranda do Corvo, a 29 de Junho
de 1914; faleceu em Lisboa, a 18 de Setembro de 1994. Fez os primeiros estudos
em Miranda do Corvo, os estudos secundários em Coimbra e Lisboa, e formou-se em
Histórico-Filosóficas pela Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra.
Ligado sempre
ao movimento literário e artístico em Coimbra, Lisboa e, posteriormente, também
em Paris, São Paulo e Rio de Janeiro, residiu na Suíça durante dois anos na sua
juventude, e publicou, em 1941, o seu primeiro romance, Rampagodos, com capa de António Augusto de Oliveira, onde relata a
infância no Portugal rural da época. O livro foi apreendido pela censura, o que
muito reduziu a sua circulação; aliás, figura actualmente no rol dos livros
raros e proibidos. Publicou, em 1945, com capa de Victor Palla (um conceituado nome
na ilustração gráfica), outro romance, Ilha
Doida, que retrata a vida num colégio interno e sobre o qual Eduardo
Lourenço viria a escrever: «É uma mistura de queirozianismo e de realismo
concreto, cru e chão dos nossos neo-realistas».
A situação não
era, porém, a mais adequada aos seus propósitos e ideais, pelo que, no ano
seguinte (1946) decide mudar-se para França, onde desempenhou funções no consulado
português em Paris, até ser dispensado em 1949, por razões políticas.
Como pintor
amador, apresentou a primeira exposição de arte abstracta em Portugal na
galeria do Diário de Coimbra em 1950,
exposição que causou escândalo na época.
Em 1951,
partiu para o Brasil em digressão com o TEUC. Não tendo regressado com a
Companhia, instalou-se em São Paulo como jornalista do Estado de São Paulo, e dirigiu a revista Atlante, de promoção da cultura luso-brasileira, onde defendeu a
criação de uma comunidade de estados de língua portuguesa.
Continuando a
escrever e a pintar, mudou-se em 1959 para o Rio de Janeiro, onde permaneceu,
até regressar definitivamente a Portugal após o 25 de Abril.
Como alguém sublinhou, ao saudar a publicação, de A Morte Segundo Estácio de Saa (Livros de Portugal, Rio de Janeiro,
1968), «vindo de longo interregno, Joaquim Ferrer regressa à literatura com uma
obra lírica», que Vitorino Nemésio não hesitou em qualificar de «raro e belo
testemunho do espírito urbano de hoje». Seguir-se-ão, também em poesia, Objectos Recuperados (Sociedade de
Expansão Cultural, Lisboa,
1969) e Ornitorrincos (Lisboa, 1970),
este último de capa assaz curiosa pelo grafismo espalhado do título, como quem
pretende debicar aqui e além…
A Revolução de Abril permitiu-lhe, enfim, respirar fundo; mas não voltou
a tentar publicar o que, em prosa e poesia, foi escrevendo ao longo de décadas.
Permitiu-lhe, também, ser reintegrado, de modo que o vemos em Lisboa, a trabalhar,
a partir de 1976, na Secretaria de Estado da Cultura, no Gabinete de Relações
Culturais Externas e no Instituto Português do Livro até 1984, ano em que se
aposentou por limite de idade.
Continuou, porém, a escrever; e, por isso, é um vasto espólio de
inéditos, dactilografados, em diferentes estados de acabamento que ora vai ser entregue
à FLUC pela família: milhares de páginas (‘mais de três metros de estante’,
confidenciou-me a Doutora Rita Marnoto, que gentilmente me facultou alguns dos
elementos de que me estou a servir) de poesia, um romance, algumas centenas de
contos e outras narrativas breves com tópicos da vida rural portuguesa, da vida
urbana no Brasil, entre outros temas variados, pensamentos, além de cadernos
manuscritos e diversos documentos biográficos do autor.
Não resisto a anexar a esta nota a página dactilografada em que Joaquim
Ferrer traça, em pinceladas breves, o que foi a sua vida. No fundo, aquilo que
ele gostava que ficássemos a saber dele. Ficamos, no entanto, a saber muito
mais, porque – por detrás do que está explícito – há um mundo implícito por
desvendar. E estou certo que, nesta descoberta, muitos estudos passarão
doravante a ser feitos, a partir dos escritos que nos legou.
Publicado em Cyberjornal, edição de
02-02-2013:
A Doutora Rita Marnoto teve a gentileza de acrescentar: «Um escritor que participou no Congresso dos Intelectuais para a Paz em Wroclaw (1948), com Alves Redol, Lopes Graça, Paul Éluard, Elio Vittorini, Picasso, Aimé Césaire, Jorge Amado, rasgando um movimento internacional de relevo».
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